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Coleção Ciências Criminais

Teses Selecionadas

Coordenadores

Alexandre Wunderlich Salo de Carvalho

Acordo de col AborAção PremiAdA

natureza jurídica e princípios orientadores da relação obrigacional

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil

Editor Responsável: Aline Gostinski

Assistente Editorial: Izabela Eid

Diagramação e Capa: Analu Brettas

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:

eduArdo Ferrer mAc-GreGor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

JuArez tAvAres

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

luis lóPez GuerrA

Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

owen m. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA

tomás s. vives Antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

B462a

Bertoni, Felipe Faoro

Acordo de colaboração premiada [recurso eletrônico] : natureza jurídica e princípios orientadores da relação obrigacional / Felipe Faoro Bertoni ; coordenação Alexandre Wunderlich, Salo de Carvalho. - 1. ed. - São Paulo : Tirant Lo Blanch, 2023. recurso digital ; 3.330 KB (Ciências criminais teses selecionadas ; 3)

Formato: ebook

Modo de acesso: world wide web

ISBN 978-65-5908-612-2 (recurso eletrônico)

1. Delação premiada (Processo penal) - Brasil. 2. Processo penal - Brasil. 3. Livros eletrônicos. I. Wunderlich, Alexandre. II. Carvalho, Salo de. III. Título. IV. Série.

23-84936

CDU: 343.2(81)

Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643

DOI: 10.53071/boo-2023-08-02-64ca9f70247d4

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais.A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.

Fone: 11 2894 7330 / Email: editoratirantbrasil@tirant.com / atendimento@tirant.com tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Coleção Ciências Criminais

Teses Selecionadas

Coordenadores

Alexandre Wunderlich Salo de Carvalho

Acordo de col AborAção PremiAdA

natureza jurídica e princípios orientadores da relação obrigacional

notA dos coordenAdores

A coleção “Ciências criminais: teses selecionadas” é fruto de um antigo projeto que nos desafia: aproximar a crítica acadêmica e a produção científica de qualidade aos profissionais do Direito, com o objetivo de sofisticar a jurisprudência nacional, reforçando os mecanismos de controle dos excessos dos poderes punitivos.

Ao longo da jornada acadêmica ocupamos espaços em diversas Instituições de Ensino, na graduação e no pós-graduação, o que nos permitiu acesso a inúmeras investigações, materializadas em dissertações e teses. Algumas pesquisas através do trabalho direto por meio de orientações e outras tantas em razão de participações em arguições. Esses materiais foram sendo selecionados e alguns se quedavam inéditos. Ao mesmo tempo, para além da acadêmica, a atividade contínua na advocacia criminal mostra a real necessidade de disponibilizar o que é produzido na universidade ao público especializado, sobretudo aos atores do sistema de Justiça Penal.

Diante da excelência de vários desses trabalhos, entendendo que o mercado cada vez mais demanda e absorve investigações profundas e de qualidade, para além dos tradicionais manuais, sugerimos para a Editora Tirant lo Blanch e para o Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais uma parceria que viabilizasse as publicações dos trabalhos selecionados. As teses e dissertações selecionadas, portanto, contribuem para o debate e o desenvolvimento das ciências criminais no país, fundamentalmente nas áreas do direito penal, processo penal, criminologia e política criminal.

Por fim, reafirmamos o nosso compromisso com a consolidação de uma dogmática crítica, que supera a falsa dicotomia teoria versus prática, e direcionada à defesa intransigente da Constituição da República e dos direitos e garantias nela positivados. Não por outra razão, o garantismo penal acaba sendo o fio condutor de boa parte dos trabalhos que serão publicados.

Por todos estes motivos é um grande prazer e renovado orgulho apresentar aos leitores a coleção “Ciências criminais: teses selecionadas”.

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Porto Alegre e Rio de Janeiro, fevereiro de 2023. ProF. dr. AlexAndre wunderlich ProF. dr. sAlo de cArvAlho

PreFácio

Ser distinguido para prefaciar um trabalho de pesquisa, sempre é uma honra e um reconhecimento ao mister do professor, do orientador. Mas a obra que tenho a honra de prefaciar se constitui em um contributo inestimável ao ordenamento jurídico criminal, na medida em que trata de um tema que suscita inúmeros problemas, ainda não solucionados pela doutrina e pela jurisprudência pátrias, aqui tratadas, magistralmente, por Bertoni. Ademais, a colaboração premiada foi sobejamente utilizada em casos de repercussão nacional e internacional, como o “Caso Mensalão” e o “Caso Lava Jato”. Felipe Faoro Bertoni, em sua obra, delimita o tema da colaboração premiada nos seguintes aspectos: natureza jurídica, princípios e hipóteses de dissolução do acordo. Oferece elementos importantes à construção e dissolução do negócio jurídico processual no âmbito criminal, assentando a validade e a legitimidade da colaboração premiada na epistemologia material e instrumental.

A obra situa a colaboração premiada no bojo do expansionismo penal e da política criminal punitivista, também fruto do incremento dos riscos na complexidade da sociedade contemporânea. O modus operandi das organizações criminosas e da macrocriminalidade, por suas especificidades, estabelecem barreiras mais fortes à intervenção penal, incrementando as metodologias ocultas de busca de prova, nelas inserindo-se a colaboração premiada. De forma pertinente, a obra evidencia a inexistência de uma teoria geral acerca da Justiça Premial ou da Justiça Negocial, em suma, dos mecanismos consensuais de resolução dos casos penais.

Bertoni circunscreve a problemática na teoria dos atos jurídicos, distinguindo a colaboração premiada como ato unilateral do acordo de colaboração premiada, um verdadeiro negócio jurídico processual. Nessa perspectiva delimita a natureza jurídica, preenchendo uma lacuna doutrinária, embora o legislador a tenha definido. Na colaboração unilateral, sem acordo (ato jurídico stricto sensu), o agente colabora de forma voluntária e unilateral com a persecutio criminis, não discutindo o prêmio, enquanto no acordo de colaboração (negócio jurídico, há convergência de vontades, inclusive no que pertine ao prêmio). O negócio jurídico processual possui efeitos materiais e instrumentais, truncando-se o iter procedimental comum. A obra faz a devida adequação dos três planos do negócio jurídico (existência, validade e eficácia) ao acordo de colaboração premiada, defendendo que os vícios repercutem de forma diferenciada na dissolução do acordo, como a resilição, resolução e rescisão. Ademais de se constituir em negócio jurídico processual, a colaboração também é um meio de obtenção de prova.

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A base epistêmica que sustenta o acordo de colaboração premiada, segundo Bertoni, é a boa-fé, nas dimensões objetiva e subjetiva; a conservação dos negócios jurídicos, priorizando-se a manutenção do avençado; e o favor rei, de modo a incidir uma exegese em prol do colaborador.

Essa formas alternativas de intervenção do ius persequendi no sistema jurídico criminal brasileiro vem desde a Constituição Federal de 1988. A partir do artigo 98, I, introduziu-se no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de soluções dialogadas no âmbito criminal, em contraposição às formas coativas e verticalizadas de resolução dos cases, abarcando aspectos de direito material e/ou processuais. Com isso, também surgiram hipóteses de recompensa, verdadeiros prêmios aos colaboradores (não investigar, não denunciar, diminuição da pena, modificar efeitos condenatórios, etc.). O princípio da legalidade, espinha dorsal dos sistemas penais da civil law, tanto no aspecto material, quanto processual, foi harmonizando-se com princípios da common law, tendo, como justificativa utilitarista, respostas mais céleres da Justiça ao colapsado sistema criminal, desde a investigação, passando ao processamento in juditio e à execução das sanções.

A normatização acerca de negociações e colaborações sobre a investigação, processo e pena ocorreram sem uma análise e discussão acerca dos formantes (lei, doutrina, jurisprudência) explícitos ou ocultos (criptotipos) dos próprios institutos aplicados nos ordenamentos originários. Igualmente, não foram consideradas as estruturas político-econômicas e culturais diferenciadas, o pluralismo jurídico, a funcionalidade global, os fatores metanormativos (ideologia, tradição, política, economia, realidade sociocultural, v. g.), bem como os problemas já enfrentados em outros ordenamentos continentais de onde foram incorporados e ampliados. Na realidade, não ocorreu propriamente uma recepção, mas uma mutação jurídica, na medida em que os institutos incorporados ao nosso ordenamento jurídico sofreram alterações e algumas adequações ao sistema penal e processual brasileiro ao serem transplantadas.

A Lei 9.099/95 definiu o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, de modo a possibilitar o consenso acerca da pena (crimes com pena privativa de liberdade cominada não superior a dois anos, apenados com multa e as contravenções penais, atualmente). Também, propiciou a suspensão condicional do processo nas infrações de médio potencial ofensivo (pena mínima cominada não superior a um ano). O consenso na fase de investigação processual adveio com a Lei 13.964/2019, com o acordo de não persecução penal (ANPP), incluindo no Código de Processo Penal o artigo 28-A. Desta forma, o Ministério Público poderá deixar de oferecer a denúncia, desde que o indiciado cumpra determinadas condições, nos delitos cuja pena privativa de liberdade mínima for inferior a quatro anos, satisfeitos diversos requisitos objetivos e subjetivos. Na transação penal, evita-se a denúncia ou seu recebimento, abrevia-se o processo e

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os efeitos da sanção acordada ou aceita; na suspensão condicional do processo, trunca-se o processo, com efeitos materiais (condições como equivalentes funcionais da pena) e processuais. No acordo de não persecução penal, evita-se o incremento da persecutio criminis, a formalização da acusação e o iter processual completo. O requisito da aceitação do prêmio pelos investigados, indiciados ou suspeitos situa esses mecanismos como equivalentes aos negócios jurídicos processuais, com efeitos materiais e instrumentais.

Em razão da garantia da ampla defesa, soa incompatível qualquer colaboração com a investigação ou acusação no âmbito criminal, assim como a aceitação de sanção criminal sem acusação explícita e imputação delimitada, problemática já enfrentada em outros ordenamentos jurídicos. Ao me debruçar sobre os mecanismos de consenso há mais de vinte anos, quando do doutoramento na Universidade Complutense de Madrid, defendi a tese da aderência constitucional quando a aceitação da sanção, do acordo penal ou processual se inserir na perspectiva de uma estratégia defensiva.

Até os momentos atuais, a colaboração premiada passou por várias normatizações esparsas: a) a Lei 8.072/1990 estabeleceu um prêmio de redução da pena de 1/3 a 2/3 ao participante ou associado em crime hediondo que denunciasse às autoridades o bando ou quadrilha, possibilitando o seu desmantelamento; b) nos caos de extorsão mediante sequestro, a partir de 1990, introduziu-se uma causa especial de diminuição de pena de 1/3 a 2/3 ao coautor ou ao partícipe de extorsão mediante sequestro, praticada em quadrilha ou bando, desde que fornecessem elementos ensejadores da libertação da pessoa sequestrada; c) nos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional ou “Lei dos Crimes de Colarinho Branco” (Lei 7.492/86), a partir da Lei 9.080/95 introduziu-se a possibilidade da colaboração, com o prêmio de redução da pena de 1/3 a 2/3; d) nos crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo (Lei 8.137/990), autorizou-se uma diminuição de pena de 1/3 a 2/3; e) a Lei da Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98) aumentou os prêmios ao colaborador, em relação à Lei 9.034/95; f) a criação do Programa Federal de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, abarcou também a proteção dos colaboradores, através da Lei 9.807/99, a qual estabeleceu a hipótese de perdão judicial (causa extintiva da punibilidade); g) A

Lei de repressão às drogas (Lei 11.343/06) estabeleceu o prêmio da redução da pena de 1/3 a 2/3 ao indiciado ou acusado que, na fase preliminar ou processual, voluntariamente, colaborasse na identificação de coautores ou de partícipes; h)

A Lei das Organizações Criminosas (Lei12.850/2013) regulou os acordos de colaboração premiada, prevendo uma causa especial de diminuição de pena ou de perdão judicial ou de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos quando a colaboração espontânea do agente levasse ao esclarecimento

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de infrações penais e de sua autoria; i) a Lei 13.964/2019 deu nova redação à Lei 12.850/2013, aumentando a normatização legislativa.

A partir da Lei 13.964/2019, a colaboração premiada possui sete fases:

1) oferecimento de proposta de colaboração, por parte do infrator, constando, expressamente, todos os fatos e circunstâncias, com indicação de elementos que possam confirmar a materialidade e a autoria das declarações (art. 3º-C, § 4º), a qual demarca o início da negociação e delimita temporalmente a proteção por sigilo (art. 3º-B); 2) recebida a proposta, pode a autoridade estatal (delegado de polícia ou membro do MP – art. 4º-A, § 6º) indeferi-la sumariamente (ato administrativo devidamente fundamentado) cientificando-se o proponente (art. 3º-B, § 1º); 3); não sendo indeferida, o colaborador e a autoridade estatal devem firmar Termo de Confidencialidade, prévio às tratativas (o Termo vincula os envolvidos e impede o posterior indeferimento sem justa causa - art. 3º-B, § 2º);

4) não havendo elementos suficientes, pode ser realizada uma instrução antes da celebração do acordo a fim de confirmar a veracidade das declarações (art. 3º-B, § 4º); 5) a documentação (termo de recebimento e termo de confidencialidade) será elaborada pela autoridade estatal celebrante e assinada, inclusive pelo colaborador e por seu defensor - poderes específicos (art. 3º-B, § 5º); 6) oitiva do colaborador, na presença de defensor, pelo juiz (art. 4º, § 7º) que não pode participar das negociações (art. 40, § 6º); 7) analisado o mérito e inexistindo nulidades (art. 4º, I a V, e § 70-B, e art. 6º), o juiz homologará o acordo (art. 4º, § 7º-A). Havendo algum vício ou não estando preenchidos os requisitos, o acordo não é homologado, podendo ser devolvido para regularização (art. 4º, § 80), sendo possível.

Em qualquer das modalidades de colaboração premiada são requisitos: vontade livre, consciente e esclarecida do colaborador; presença de defensor em todos os atos; afastamento do julgador da negociação da colaboração; possibilidade de retratação exclusivamente pelo colaborador; proibição da utilização da colaboração e de todos os elementos daí decorrentes na hipótese de resultar inexitosa a colaboração; e por si só, a colaboração não é prova, mas mero argumento de prova que deve indicar provas a obter para confirmar as declarações do colaborador.

Da esfera criminal propriamente dita, o direito premial lançou seus tentáculos ao âmbito administrativo. As infrações contra a ordem econômica (Lei 8.884/94), a partir da Lei 10.149/2000 (arts. 35-B e 35- C), passaram a admitir o denominado “acordo de leniência” entre a União e os autores dessas infrações, pessoas físicas ou jurídicas, na esfera administrativa. Os prêmios são a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução da pena de 1/3 a 2/3, desde que haja colaboração efetiva na investigação e no processo administrativo, resultando a identificação dos demais autores e a obtenção de informações e docu-

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mentos comprobatórios da infração noticiada ou investigada. Ainda, aos delitos previstos na Lei 8.137/90 (arts. 4º, 5º e 6º), também contra a ordem econômica, o referido acordo impede o oferecimento da denúncia, suspendendo o prazo prescricional, extinguindo-se a punibilidade com o cumprimento do acerto.

Inúmeros são os problemas surgidos com a colaboração no processo penal, com ou sem os prêmios, em todas as esferas, desde aos aspectos éticos aos jurídicos. A transformação do autor de ilícitos, em testemunha, há de receber uma valoração especial, com testagem de sua credibilidade e confiabilidade, uma vez admitida essa modalidade de prova. Por isso, se faz necessário saber se houve delação, qual sua extensão, quais os prêmios recebidos e quem foi afetado, sob pena de ruírem o contraditório e a ampla defesa, bem como de transformar-se o processo em um simulacro para obter um resultado já sabido e construído via emboscada, com dados marcados. Ademais, a testemunha colaboradora e seus familiares devem receber do Estado uma efetiva proteção. Há necessidade do estabelecimento de regras objetivas, claras e transparentes acerca da delação, aplicáveis ao delator, ao processo, aos demais envolvidos, ademais da medição dos prêmios, sob pena de ofensa à legalidade processual e constitucional. Os parâmetros ao estabelecimento da legalidade procedimental são os constitucionais. Nessa perspectiva, o processo em que haja colaboração premiada também deverá terminar num prazo razoável (art. 5º, LXXVII, CF), em atendimento às especificidades do delito, da colaboração e do processo; deverá haver regramento dos elementos subjetivos (colaboradores, advogados, Ministério Público e magistrados), objetivos (delitos, espécies de prêmios) e de atividade (lugar, tempo e forma), com utilização de meios eletrônicos de documentação, procedimento prévio e efeitos jurídicos.

Como bem se pode observar, Bertoni labora na perspectiva de a colaboração premiada ser um negócio jurídico processual que tem por objeto uma metodologia investigativa, de busca de elementos incriminatórios mediante a colaboração do suspeito ou investigado, quem, via de regra, incrimina terceiros (art. 3º-A, Lei 12.850/2013), diferentemente dos acordos sobre a pena e processo da Lei 9.099/95 (transação penal, suspensão condicional do processo e composição civil dos danos) e do acordo de não persecução penal trazido pela Lei 13.964/2019, que são atos de disposição formal e material, nos quais o objeto do acordo (prática de ilícito penal) não abrange terceiros por impossibilidade de produção de efeitos incriminadores (intransmissibilidade da pena/responsabilidade penal individual – art. 5º, XLV, CF). Embora também possa produzir efeitos penais, é instituto eminentemente instrumental.

A colaboração poderá evitar o ilícito (colaboração preventiva), desvendá-lo ou incriminar outros agentes (colaboração incriminatória ou repressiva). Em ambos os casos a colaboração tem como requisito o oferecimento de informações que possam confirmar o teor das declarações. Essas informações precisam, no

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mínimo, possibilitar o encontro de provas. No máximo, são documentos analógicos ou digitais que podem confirmar as declarações, desde que provada a fiabilidade. Vale dizer, a colaboração não é prova ou meio de prova. Por isso, as declarações dos delatores não podem servir de suporte ao recebimento da denúncia, decretação de medidas cautelares ou condenações (art. 4º, § 16, I a III, Lei 12.850/2013).

Dentre as principais críticas ao instituto estão a amistosa e temerária aproximação do investigado ao investigador e acusador, a premiação da deslealdade, a corrupção do sujeito, a violação ao princípio da legalidade no que tange à obrigatoriedade de acusar, o reconhecimento pelo Estado das suas deficiências na persecutio criminis, a distribuição de prêmios jurídicos às condutas violadoras da ética e a instrumentalização do ser humano. Não se pode olvidar a possibilidade de a colaboração subverter a ordem jurídica democrática, motivo por que se torna premente a tipificação de limites, visando a tutela dos direitos e das liberdades fundamentais.

A presente obra origina-se na tese defendida por Bertoni no Doutorado em Ciências Criminais da PUCRS, após cinco anos de intensa atividade acadêmica. Portanto, é fruto de pesquisa, reflexão e altas discussões. A publicação revela sua relevância temática e científica, produzindo intensos efeitos na sociedade e no mundo jurídico.

Ao final dessa apresentação, devo parabenizar Felipe Faoro Bertoni pelo excelente trabalho produzido.

Porto Alegre, janeiro de 2023.

nereu José GiAcomolli, Coordenador, pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS; investigador integrado do Ratio Legis –Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da UAL/ Lisboa, vinculado ao Projeto Corpus Delicti – Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional; advogado.

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umA APresentAção do Autor

Honra-me fazer a apresentação do autor Felipe Faoro Bertoni, que publica na coleção “Ciências Criminais: teses selecionadas” a sua investigação de doutoramento, que foi orientada pelo Prof. Dr. Nereu José Giacomolli junto do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Escola de Direito da PUCRS, cuja banca de arguição tive a oportunidade de participar.

Desde que Felipe Bertoni iniciou seus estudos na área das ciências criminais, prontamente se notabilizou como um investigador arguto e um pesquisador dedicado. Posso dizer que acompanhei muito proximamente a sua formação jurídica, desde o seu diploma de láurea acadêmica na graduação da Escola de Direito da PUCRS e, depois, no pós-graduação, no mestrado e no doutorado em ciências criminais pela mesma instituição.

No ambiente universitário, Felipe Bertoni construiu sua carreira com a solidez daqueles que enxergam as ciências criminais para além do lugar comum, desde uma perspectiva humanista e calcada na dogmática crítica. Por mérito, assumiu a cátedra nos cursos de Direito, Administração e Ciências Contábeis da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre, sendo convidado a lecionar em diversos cursos de pós-graduação no país. Experimenta, ainda, um compromisso com os alunos que pretendem ingresso em carreiras jurídicas públicas, sendo ativo docente em cursos de preparação.

Tenho convicção de que hoje, o autor que agora apresento à comunidade em geral em seu primeiro trabalho monográfico de fôlego, é merecedor do crédito de tratamento de Professor Doutor Felipe Faoro Bertoni. Sua qualidade técnica me ficou mais clara quando tive o prazer de tê-lo como coautor de um trabalho bastante significativo, o livro “Colaboração Premiada após a Lei Anticrime”, também publicado pela editora Tirant lo Blanch (WUNDERLICH, Alexandre et al. Acordo de não persecução penal e colaboração premiada: após a lei anticrime. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022). Dividir a caneta com Felipe Bertoni em tempos de pandemia foi um desafio que acabou sendo bastante gratificante.

Além disso, Felipe Bertoni vem construindo muito bem a sua carreira na advocacia criminal, sempre atento aos temas relevantes da doutrina e da jurisprudência e firme na defesa dos direitos de seus clientes. O presente trabalho, além de uma contribuição doutrinária de peso sobre o instituto da colaboração premial, sua natureza jurídica, seus princípios e hipóteses de dissolução, é certeza de um bom aporte para a prática da advocacia que se pretende técnica e ética. A investigação de doutorado de Felipe Bertoni sobre o processo negocial no direito

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penal tem como base epistêmica a boa-fé, em suas dimensões objetiva e subjetiva, premissa que deve justamente nortear, também, a advocacia. Da teoria à prática, o autor busca a validade ética e jurídica dos negócios processuais.

A tese de Felipe Bertoni faz parte da reafirmação do nosso compromisso, do Professor Salo de Carvalho e meu com a colação Ciências Criminais – com a consolidação de uma dogmática crítica, que supera a falsa dicotomia teoria versus prática e direcionada à defesa intransigente da Constituição da República. Não por outra razão, o garantismo penal acaba sendo o fio condutor de boa parte dos trabalhos que selecionamos.

Parabéns ao Felipe Bertoni. Obrigado Tirant lo Blach. Uma boa leitura.

Praia do Arpoador, em Xangrilá, no Rio Grande do Sul, em fevereiro de 2023.

ProF. dr. AlexAndre wunderlich

Doutor em Direito pela PUCRS, Professor do Mestrado Profissional em Direito do IDP (em Brasília) e da Escola de Direito da PUCRS (em Porto Alegre), Advogado.

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sumário notA dos coordenAdores ................................................................................... 5 Alexandre Wunderlich e Salo de Carvalho PreFácio ............................................................................................................. 6 Nereu José Giacomolli umA APresentAção do Autor ............................................................................. 12 Alexandre Wunderlich 1. introdução .................................................................................................. 15 2. A exPAnsão do Poder Punitivo como desenvolvimento de esPAços de consenso no direito e Processo PenAl .............................................................................. 19 2.1. A sedução da punição, a midiatização do medo e a expansão (e falência) do Direito Penal: abertura para espaços de consenso no Direito e Processo Penal 19 2.2. As dimensões da Justiça Negocial no Direito Penal e Processual Penal Brasileiro: o caminho sem volta e a delimitação dos espaços de consenso ........................................... 40 2.3. O fator colaboração premiada como expansão da teia punitiva para a criminalidade empresarial: riscos e problematizações ............................................................................ 52 3. A GeneAloGiA dA colAborAção PremiAdA: comPreendendo A nAturezA JurídicA do instituto ..................................................................................................... 59 3.1. Compreendendo o regime geral do instituto: apontamentos sobre a Teoria do Fato Jurídico .......................................................................................................................... 60 3.2. A categoria dos Negócios Jurídicos Processuais 81 3.3. A colaboração premiada enquanto instituto de Direito: exame do regramento legal........ 96 4. os PrincíPios reitores dA relAção neGociAl, os requisitos de existênciA, vAlidAde e eFicáciA do Acordo de colAborAção PremiAdA e As PrinciPAis hiPóteses de dissolução do PActo .................................................................................. 119 4.1. A matriz axiológica do acordo de colaboração premiada: os princípios da boa-fé, da conservação dos negócios jurídicos e do favor rei 119 4.2. O acordo de colaboração premiada nos planos da existência, validade e eficácia ........ 143 4.3. Analisando hipóteses de dissolução do acordo de colaboração premiada e as suas repercussões jurídicas ................................................................................................... 156 5. conclusão ................................................................................................. 168 reFerênciAs biblioGràFicAs ............................................................................. 173

1. introdução

É seguro falar que poucos institutos adquiriram tanta relevância, em tão pouco tempo, como a colaboração premiada. De fato, apesar de integrar o nosso ordenamento jurídico desde 1990, pelo artigo 8°, parágrafo único, da Lei nº 8.072/1990, sob outra roupagem e com outra configuração, nos últimos anos as repercussões acerca da premiação judicial de um delator – ou colaborador – se intensificaram sensivelmente.

Com efeito, foi pela colaboração premiada como meio de obtenção de prova que se possibilitou o alcance investigativo e persecutório de condutas e pessoas que antes figuravam em uma posição de alheamento ao sistema de administração da justiça penal. Não porque não praticavam infrações penais, mas porque os mecanismos de seletividade os protegiam em diversos aspectos.

Todavia, esse panorama, aos poucos, acabou sendo modificado. A Operação Mensalão e, mais acentuadamente, a Operação Lava Jato podem ser considerados marcos fundamentais desse giro paradigmático na Política Criminal brasileira, que influenciou, também, os contornos dogmáticos do Direito Penal e do Direito Processual Penal. Se antes dessas operações o ordenamento jurídico reservava aos espaços de consenso papel secundário, destinado às infrações de menor potencial ofensivo e sem consequências diretas para a restrição do direito à liberdade – o que hoje se pode chamar de justiça negocial de primeira dimensão – a centralização da colaboração premiada como instituto possibilitador de desenvolvimento de investigações e persecuções penais no âmbito da macrocriminalidade inaugurou um novo e vasto espaço para o campo negociativo na esfera criminal. Efetivamente, a crescente utilização da colaboração premiada em crimes graves – crimes contra a administração pública, contra o sistema financeiro nacional, lavagem de dinheiro, etc. – forçou uma remodelação da justiça consensual, criando-se uma espécie de segunda dimensão, a qual, dessa vez, tocava delitos considerados de maior lesividade e, consequentemente, atingia mais diretamente o direito de liberdade dos envolvidos – colaborador e implicados.

Ocorre que houve considerável celeridade na realização de acordos de colaboração premiada, de modo que, em poucos anos, transmutou-se o instituto de coadjuvante à protagonista. E para essa mudança de papéis não estava preparado o nosso ordenamento jurídico. Poucos artigos da Lei nº 12.850/2013 disciplinavam a matéria, cujos limites, possibilidades e tensões acabaram sendo desenvolvidos pela jurisprudência, seguida pela doutrina. Assim, ainda que diante de flagrante carência normativa, alguns parâmetros acabaram sendo criados na prática jurisdicional e restaram, posteriormente, incorporados pela legislação, por meio

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da Lei nº 13.964/2019, de 24 de novembro de 2019, conhecida como Pacote Anticrime. Apesar de referida divisa normativa ter significado relativo avanço no regramento da colaboração premiada, especialmente pela positivação de vários critérios já sedimentados pela jurisprudência, ainda há essencial deficiência de regulamentação.

Em verdade, está-se em franca fase de amadurecimento do instituto, sendo imperioso que sobre ele se debrucem estudos sérios e comprometidos, aptos a possibilitar a sua conformação com o ordenamento jurídico e a sua sedimentação como instrumento salutar de obtenção de prova, compatível com direitos e garantias fundamentais, tanto de colaboradores, quanto de delatados. Caso não se forneça essa necessária atenção, nesse momento de maturação, é possível que haja incorrigíveis deturpações na sua prática, utilização e concepção, tornando-se a colaboração premiada um instrumento a serviço do punitivismo, incapaz de oferecer segurança jurídica para os envolvidos. Pensa-se que nesse ponto reside a relevância da pesquisa, que toca objeto com raízes recém firmadas e em fase de plena evolução e desenvolvimento.

Preocupa-se, especificamente, o presente estudo, em abordar três pontos específicos. O primeiro deles consiste na investigação acerca da natureza jurídica da colaboração premiada. A identificação da essência do instituto, considerando a sua relativa novidade no ordenamento jurídico, pelo menos na forma como vem sendo utilizado, é medida impositiva. Quanto ao ponto, é fundamental mencionar que, embora tenha ocorrido, por meio da Lei nº 13.964/2019, a definição legal de que se constitui o acordo de colaboração premiada um negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, essa simples definição legal não retira a pertinência do estudo. Efetivamente, torna-se fundamental compreender onde se situa a categoria dos negócios jurídicos na Teoria Geral do Direito, bem como quais as consequências para a colaboração premiada derivam dessa positivação celebrada pelo Pacote Anticrime.

O segundo ponto de relevo relaciona-se com os princípios que devem reger a relação obrigacional advinda da celebração da avença colaborativa. Ora, é inegável que a atuação conjunta da acusação e defesa (do colaborador) para a incriminação de terceiros estabelece um panorama que subverte a lógica ordinariamente vigente na dinâmica processual penal, normalmente permeada pela combatividade e pela contraposição de versões e interesses. Dessa forma, operando-se a relação negocial uma nova lógica de atuação processual, com a formação de um vínculo obrigacional entre acusador e acusado e formalizada por um instrumento contratual, é evidente que se torna necessária a construção de princípios para balizar essa conexão sobre a qual ainda não incidem orientações normativas claras, concretas e precisas.

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O terceiro foco do trabalho traduz-se pela identificação dos casos em que pode ocorrer a extinção do contrato de colaboração premiada, bem como quais os efeitos jurídicos que podem gerar. Essa análise torna-se fundamental, pois a legislação é lacônica quanto ao ponto, tecendo poucas considerações sobre hipóteses que poderiam causar o desfazimento da avença e fazendo meras e dúbias indicações sobre a (im)possibilidade de utilização dos elementos produzidos pelo processo colaborativo. A carência legislativa gera insegurança e, por isso, cumpre-se aprofundar o exame.

Para fins de construção da pesquisa, utilizou-se a metodologia de revisão bibliográfica, recorrendo não só a material de Direito Penal e Processual Penal, mas também relacionado à Teoria Geral do Direito e ao Direito Civil e Processual Civil, especialmente nos temas relacionados às obrigações e aos contratos. Essa interlocução perfaz-se fundamental, tendo em vista que o gênero negócio jurídico, do qual é espécie o acordo de colaboração premiada, tem a sua construção e desenvolvimento abordados pela Teoria do Fato Jurídico. Ainda, o seu escorço principiológico e normativo foi substancialmente desenvolvido à luz do Direito Privado, do qual se pode colher relevantes lições, sempre observando as necessárias distinções, particularidades e limitações de cada área.

A estrutura da obra obedeceu a divisão de três capítulos, sendo que, no primeiro, analisou-se, inicialmente, de que forma as características de uma sociedade de risco, pautadas por uma agenda de midiatização do medo, influenciaram a criação de um panorama de intensa expansão do Direito Penal. Procurou-se demonstrar que essa situação de desmedida expansão penal contribuiu para o descrédito e para a ineficiência do Direito Penal, o qual, sistematicamente, gera situações disfuncionais e teratológicas. Em desenvolvimento, identificou-se que essa hiperinflação penal causa, em alguma medida, morosidade, em desalinho com a vigente lógica de eficientização. Esse panorama contribuiu para a busca de soluções alternativas de conflitos criminais, dando início à primeira dimensão da justiça penal negocial. Inobstante esse movimento, ainda havia parcela da criminalidade que escapava do alcance da teia punitiva, tendo, no ponto, o fator colaboração premiada servido como forma de expansão penal para os crimes econômicos.

O segundo capítulo direciona atenção para a genealogia da colaboração premiada, buscando compreendê-la como fato jurídico, submetido ao regime jurídico geral desenvolvido pela Teoria do Fato Jurídico. Em seguida, buscou-se depurar a categoria do negócio jurídico processual, espécie do gênero fato jurídico, examinando a sua relação com o Direito e Processo Penal. Após, procurou-se identificar, sob a luz da Teoria do Fato Jurídico, a colaboração premiada enquanto instituto de direito, avaliando, igualmente, o regramento legal existente.

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Outrossim, iniciou-se o capítulo derradeiro buscando estabelecer uma matriz axiológica sobre a qual deveria se desenvolver a colaboração premiada, passando-se para o exame do acordo de colaboração premiada em seus planos de existência, validade e eficácia. Ao final, examinou-se algumas hipóteses de extinção do acordo de colaboração premiada, pontuando quais repercussões jurídicas poderiam ser causadas pelo desfazimento da avença.

Ademais, acredita-se que a presente pesquisa tenha apresentado proposições teóricas carregadas de certo ineditismo, considerando os seguintes pontos: (i) buscou-se identificar a gênese do instituto negócio jurídico, construído e conformado sob as bases do Direito Privado, verificando a sua compatibilidade e o seu alinhamento ao Direito e Processo Penal, ramo do Direito Público; (ii) realizou-se a proposição de um subsistema principiológico que deve orientar a atuação das partes na relação negocial existente no acordo de colaboração premiada, para fins de se implementar maior segurança jurídica aos envolvidos e, por fim, (iii) foram tecidas considerações sobre as diferentes formas de extinção contratual desenvolvidas pela doutrina e pela legislação, realizando o seu devido alinhamento à esfera do Direito e Processo Penal.

Por fim, é certo que a obra que se apresenta não esgota a imensidão de perspectivas de exame do objeto colaboração premiada. Entretanto, pensa-se que oferta modesta contribuição ao descortinar novos caminhos de interpretação e modulação do instituto.

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2. A exPAnsão do Poder Punitivo

como desenvolvimento de esPAços de consenso no direito e Processo PenAl

Neste capítulo, em primeiro plano, será realizada uma abordagem sobre o papel que o medo e a insegurança exercem nas sociedades modernas, circunstância que, bem manejada pelos veículos de comunicação de massa, incutem na população um estado de pânico generalizado, que culmina em uma incessante busca por segurança. Esse fator, em conjunto com um trabalho de elaboração de campanhas de purificação social – aos moldes do que foi representado pela Operação Lava Jato e seus “heróis” – vem contribuindo para uma grande expansão do Direito Penal, que busca (e encontra) cada vez mais espaços de penetração. Em seguida, será indicado como essa inflação penal concorreu para a própria falência do Direito Penal, em seus moldes clássicos, o qual, mesmo hipertrofiado, ainda encontrava barreiras de entrada em determinadas categorias de infrações penais, especialmente aquelas relacionadas à criminalidade econômica. Nesse sentido, ilustrar-se-á que esse contexto social e político criminal influenciou o caminhar na direção de espaços mais amplos de consenso no Direito e Processo Penal, inaugurando o desenvolvimento de uma justiça penal negocial de segunda dimensão – cujo instituto precursor foi a colaboração premiada –que possui o desiderato de alcançar delitos de maior gravidade do que os tocados pela justiça penal de primeira dimensão, essencialmente relacionados à Lei nº 9.099/1995.

Outrossim, será descrito o cenário de consensualidade existente no ordenamento jurídico, o qual foi inaugurado pela Lei nº 9.099/1995 e ampliado pelas Leis nº 12.850/2013 e 13.964/2019. Por derradeiro, serão pontuados riscos e problematizações advindos da realidade dessa “nova forma de fazer justiça”.

2.1. A sedução dA Punição, A midiAtizAção do medo e A exPAnsão (e FAlênciA) do direito PenAl: AberturA PArA esPAços de consenso no direito e Processo PenAl

O Direito Penal encontra crescente espaço de penetração no âmbito da sociedade. Cada vez mais fatos da vida tornam-se objeto de tutela da legislação penal, garantindo a incidência – real ou virtual – da norma penal na tentativa

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de regulação de comportamentos por meio da aplicação de uma pena ou da sua ameaça. O Processo Penal caminha na mesma direção, tendo sofrido fortes movimentos autoritários. Tido em sua gênese como um instrumento protetivo do mais débil (imputado, acusado, apenado), hoje, parece carecer daqueles contornos constitucionais que tanto o demarcaram, servindo como mera formalidade legal à imposição de dor a outrem. A lógica populista aparenta ser simples: para saciar os desejos (mais espúrios e imediatos) do povo, suspensos estão quaisquer limites. Outorga-se, assim, um gozar a qualquer preço1.

Perpassados três séculos do foucaultiano suplício de Damiens2, percebe-se o quão pouco, na atual realidade, a espantosa Maquinaria Penal afastou-se de sua tarefa de causar dor. É claro, já não há mais suplícios declarados, mas por baixo dos panos ouvem-se histórias escabrosas de dor e sofrimento envolvendo o sistema penitenciário. E isso tudo acontece com grande legitimação da população que, seduzida pela violência e pela punição, bem como descrente do funcionamento das instituições formais de controle, clama por espetaculares punições. Quanto mais sofrimento, melhor, e, nesse orquestramento, o espantoso é que o espantoso não espanta ninguém3. Além de não espantar, a barbárie encontra ressonantes aplausos, bastando salientar que, em pleno “desenvolvido” século XXI, em meio ao colossal desenvolvimento tecnológico, paradoxalmente, os míopes4 linchamentos (suplícios) de meros suspeitos viram hits instantâneos nas redes sociais.

Na teatralidade do Direito e Processo Penal, o protagonismo atribuído ao padecimento (físico, emocional, financeiro, etc.) do sujeito redunda, justamente, da dramaturgia ritual que leva toda a plateia carnavalesca ao regozijo burlesco. Para Georges Balandier, dentro da dinâmica social, o papel de agente do mal atri-

1 MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003, p. 17.

2 Na obra Vigiar e Punir Michel Foucault retrata o suplício de Damiens, condenado, em 2 de março de 1757, na França, por parricídio: “Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757, a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris (aonde devia ser) levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; (em seguida), na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpos consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento”. In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão, 35. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 9.

3 ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra. São Paulo: Cosacnaify, 2007, p. 23.

4 A título ilustrativo, cumpre citar dois casos de aplicação míope da (in)justiça popular: (i) o primeiro caso ficou conhecido como “O Estupro do T1 (nome de uma linha de ônibus da cidade de Porto Alegre, RS)”. Uma jovem informou ter sido estuprada após ter descido de um ônibus da linha T1, na cidade de Porto Alegre. O fato foi noticiado na imprensa e nas redes sociais, tendo, inclusive, sido divulgado um retrato falado do suposto agressor. A inquietação social foi tanta que culminou no linchamento, em 2 de junho de 2016, de um sujeito que apresentava características semelhantes ao suposto agressor. Segundo as informações divulgadas na mídia, o indivíduo sobreviveu ao ataque, embora tenha sido agredido, espancado e amarrado por diversas pessoas. Após a agressão, as investigações policiais chegaram à conclusão de que, em verdade, o estupro não teria ocorrido, o que gerou o indiciamento da jovem por falsa comunicação de crime. (ii) O segundo caso apresentou desfecho mais grave. Trata- se do caso da Fabiane Maria de Jesus. De acordo com as informações constantes na imprensa foi divulgado um boato nas redes sociais, segundo o qual uma mulher estaria sequestrando crianças para utilizar em rituais de magia negra. Após a divulgação do fato, que em seguida se revelaria falso, Fabiane Maria de Jesus foi confundida com a inexistente “sequestradora”, tendo sido, na data de 5 de maio de 2014, linchada e morta (sem sequer saber o motivo) por dezenas de pessoas.

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