

PROCESSO CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO

CONSTRUÇÃO DE PADRÕES CONDUTORES
E DECISÓRIOS PARA A EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM JUÍZO
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Assistente Editorial: Izabela Eid
Capa e diagramação: Jéssica Razia
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:
Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez Tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis López Guerra
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
Owen M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
Tomás S. Vives Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B695p

Bonemer, Bruno Angeli
Processo civil de interesse público [recurso eletrônico] : construção de padrões condutores e decisórios para a efetivação de políticas públicas em juízo / Bruno Angeli Bonemer ; [coordenação Eduardo Lamy, Pedro Miranda de Oliveira] - 1 ed - São
Paulo : Tirant Lo Blanch, 2023 recurso digital ; 1 MB
Formato: ebook

Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5908-589-7 (recurso eletrônico)
1 Processo civil - Brasil 2 Interesse público - Brasil 3 Livros eletrônicos I Lamy, Eduardo II Oliveira, Pedro Miranda de III Título
23-84491
CDU: 347.91/195(81)
Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643
DOI: 10.53071/boo-2023-06-28-649c975869ced
14/06/2023 20/06/2023
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Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Bruno Angeli BonemerPROCESSO CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO

CONSTRUÇÃO DE PADRÕES CONDUTORES
E DECISÓRIOS PARA A EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM JUÍZO
Ao Max e à Leti, os dois tesouros da minha vida. À Marcia, minha rainha. E ao Christian, com a certeza de que um dia o verei novamente.
“Se a Constituição é utopia, nós somos utopistas, se a liberdade é sonho ou quimera, nós somos sonhadores, se o Direito é falácia, nós somos palradores ingênuos, se a verdade é demagogia, nós somos demagogos, se a justiça é devaneio, nós somos insensatos, se o contrato social é ficção e engodo, nós somos seus derradeiros abencerrages, se a separação de poderes é arcaísmo e velharia, nós somos os guardas desse museu.”
(Paulo Bonavides)
A julgar pelos estudos da Comissão Constitucional, a nova Carta manterá a tradição detalhista que tem dificultado a aplicação de todas as constituições que o país já conheceu. Será mais um calhamaço?
“Vai ser um calhamaço. (...) No Brasil, a complexidade do texto é uma imagem de nossas carências. Estamos tomando uma porção de medidas complicadas para atender a interesses muito grandes que também são complicados. Faço o possível para diminuir o número de capítulos e artigos, mas temo que a nova Constituição fique igual à da Índia. A Constituição da Índia é um catatau.”
(Afonso Arinos de Melo Franco, Presidente da então Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, criada para elaborar o anteprojeto da Constituição, em entrevista à Revista Veja, Páginas Amarelas, de 4 de junho de 1986)
NOTA DOS COORDENADORES
A Escola Brasileira de Direito Processual Civil tem colaborado significativamente para o aprimoramento da disciplina, dentro e fora do país. O número de obras que se dedicam ao tema é bastante elevado, se comparado à quantidade de trabalhos publicados na maioria das nações estrangeiras.
Estudiosos como José Carlos Barbosa Moreira, do Rio de Janeiro, Ada Pellegrini Grinover e Teresa Arruda Alvim Wambier, de São Paulo, Humberto Theodoro Júnior, de Minas Gerais, e Luiz Guilherme Marinoni, do Paraná, dentre outros, divulgaram e continuam divulgando seus trabalhos em eventos internacionais de escol.
No âmbito do Processo Civil, as obras brasileiras têm sido amplamente acolhidas no estrangeiro. Tem acontecido, nesse diapasão, verdadeira conquista da América Latina pelo Brasil. O país inclusive sediou, no ano de 2007, o Congresso Mundial de Direito Processual, promovido pela International Association of Procedural Law – IAPL, ocupando, desde então, mais do que nunca, posição de destaque.
Ocorre que o desenvolvimento de qualquer disciplina necessita, invariavelmente, da concessão de oportunidades, como demonstrou o prêmio Nobel em economia Amartya Sen, em Desenvolvimento como Li- berdade.
É por este motivo que propusemos à Editora Empório do Direito o lançamento da presente Coleção Novo Código de Processo Civil que, salvo os dois primeiros volumes (de autoria dos coordenadores), será dedicada à publicação de Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado produzidas pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina que se dedicam ao estudo do Processo Civil.
Ilha de Santa Catarina, verão de 2016.
Eduardo Lamy Pedro Miranda de OliveiraDIAGNÓSTICO
DO PODER JUDICIÁRIO E DO PROCESSO CIVIL
1.1 ASPECTOS CONTEXTUAIS DA CRISE DO JUDICIÁRIO
“O Judiciário enfrenta uma crise”. Esta frase parece ser uma constatação da realidade atual, mas não. Desde a década de 1960 já se lamentava o colapso do Poder Judiciário como promotor de segurança jurídica – e a criação das súmulas e arguições de constitucionalidade perante o STF, além da edição de três legislações processuais inteiramente novas (1939, 1973 e 2015), das dezenas de reformas processuais ocorridas ao longo de setenta anos e, principalmente, da própria Emenda Constitucional n. 45/2004, são evidências claras da ineficiência do Poder Judiciário como garante da segurança jurídica.
Não se tem confiança no Poder Judiciário, conforme revelam os relatórios1 do ICJ Brasil, da Fundação Getúlio Vargas. Apenas 24% dos entrevistados confiam na Justiça estatal – o que ainda assim representa um desempenho melhor do que o apurado para o Congresso Nacional e os Partidos Políticos (7%) e o Executivo federal (6%):
Essa desconfiança generalizada está intimamente ligada à morosidade na prestação jurisdicional, no custo e na dificuldade de se utilizar a Justiça estatal para a resolução de conflitos, mas também associada a falta de independência frente aos demais poderes, corrupção e incompetência para a solução dos casos.2
Paradoxalmente, no entanto, o brasileiro médio nunca deixou de cultivar, em seu âmago, o apego às estruturas estatais para resolver-lhe os problemas do cotidiano, em uma espécie de “paradoxo do estatismo” – visto que, ao mesmo tempo, tanto se desconfia de políticos, juízes e
2017. FGV Direito SP
São Paulo: FGV, 2017. Disponível em:https:/ / bibliotecadigital. fgv. br/ dspace/ bitstream/ handle/ 10438/ 19034/
Relatorio- ICJBrasil_ 1_ sem_ 2017. pdf?sequence= 1& isAllowed= y. Acesso em 24 mai 2020.
2 RAMOS, Luciana de Oliveira. CUNHA, Luciana Gross. OLIVEIRA, Fabiana Luci de. SAMPAIO, Joelson de Oliveira. BUENO, Rodrigo de Losso Silveira. ÚBIDA, Giovanna. Relatório ICJBrasil. 11º semestre/ 2017. FGV Direito SP
São Paulo: FGV, 2017. Disponível em:https:/ / bibliotecadigital. fgv. br/ dspace/ bitstream/ handle/ 10438/ 19034/
Relatorio- ICJBrasil_ 1_ sem_ 2017. pdf?sequence= 1& isAllowed= y. Acesso em 24 mai 2020.
das próprias instituições – a definir o país como essencialmente patrimonialista e hierárquico. Em síntese, concebe-se uma utopia de Estado que não corresponde à frustrada realidade; mas segue-se insistindo no que claramente corresponde a um erro, com a esperança de que, um dia, será atingido o modelo de Estado que proverá toda a sorte de direitos possíveis e, dentro desses inúmeros benefícios, o de resolver, célere e adequadamente, os conflitos sociais.3
Há, portanto, na cultura brasileira, uma forte tendência de delegar a solução dos conflitos sociais às magistraturas estatais – estas, concebidas como fonte de força e hierarquia paternalista e até providencialista. Alguém precisa nos dizer quem está certo ou errado – e esta pessoa, investida de poderes de magistratura, materializa o Estado idealizado.4
Deixamos, portanto, de buscar a solução dos conflitos por mecanismos de autocomposição – o que nos leva ao primeiro checkpoint deste trabalho: analisar o Código de Processo Civil frente a um desafio muito maior do que meramente o de seguir alterando o marco legal para “aprimoramento de procedimentos judiciários estatais”: a cultura jurídica brasileira necessita ser radicalmente reinventada,5 ainda mais quando o Judiciário passa a assumir funções de concretização de políticas públicas.
Isso passa, inicialmente, pela própria formação profissional dos bacharéis na área jurídica – pouco pautada na efetividade do Direito como ciência que se relaciona com a sociedade, e muito mais focada na memorização de conteúdo das regras materiais e nos instrumentos para litigar6. É dizer: não se verifica, no profissional médio (e aqui, os advogados em geral não estão sozinhos – magistrados, promotores e os representados desempenham papel importante nesse contexto) a percepção de que a função precípua da ciência jurídica é de estabilização das relações sociais, mas sim, a postura puramente conflituosa e hostil, que acabam por selar o destino da contenda: a judicialização.
3 GARSCHAGEN, Bruno. Pare de acreditar no governo: por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado. 1. ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 108- 109.
4 WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e solução pacífica dos conflitos de interesses. In: ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios adequados de solução de conflitos. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 840.
5 LESSA NETO, João Luiz. O novo CPC e o modelo multiportas: observações sobre a implantação de um novo paradigma. In: ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios adequados de solução de conflitos. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 917- 921.
6 LESSA NETO, João Luiz. O novo CPC e o modelo multiportas: observações sobre a implantação de um novo paradigma. In: ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios adequados de solução de conflitos. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 913- 917.
Esta afirmação não se resume a mero pressentimento ou a uma indução empírica. A teoria Hobbesiana do Leviatã (de que “o homem é o lobo do homem” e que não reserva espaço para a paz permanente, sendo inata ao homem a vocação para o conflito)7 é basicamente materializada pela experiência brasileira. Com uma população superior a duzentos milhões de habitantes, a existência de mais de cem milhões de processos judiciais evidencia uma estatística digna de um quadro de Picasso: a de que a população brasileira está em conflito consigo.8
Em meio a esse ciclo escancaradamente vicioso, o sistema de Justiça no Brasil foi ganhando cada vez mais musculatura funcional, ramificando-se em magistraturas temáticas tanto em nível federal (Justiça Federal, Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral, Justiça Militar) quanto em nível estadual (Justiça Estadual, Justiça Militar Estadual), além de juizados especiais também temáticos (Juizado Especial Cível, Criminal, da Fazenda Pública) e um Ministério Público como instituição autônoma cada vez mais dotada de prestígio e influência. Nada disso foi capaz de aplacar o colapso do Poder Judiciário – pelo contrário, acostumamo-nos a tratar os sintomas como causas do problema, apegando-nos às respostas clássicas “faltam orçamento, estruturas materiais e pessoas” ou “é urgente criar mais cargos, mais varas, mais tribunais”.9
Nesse caldeirão, a Constituição Federal de 1988 desempenha papel central na relação do Poder Judiciário com a sociedade, contribuindo para a transferência das tradicionais arenas de debate político (notadamente no Parlamento e nas estruturas colegiadas do Executivo) para o Poder Judiciário. O estabelecimento de inúmeras obrigações estatais executivas no texto constitucional acabou por abrir as portas do Poder Judiciário para atribuir efetividade à Constituição10 .
Em paralelo à judicialização de políticas públicas (que surge dentro do contexto administrativista-constitucional), as demandas indivi-
7 Sobre o estudo deste clássico: MARTINS NETO, João dos Passos. Uma introdução ao estudo do Leviatã. Dissertação apresentada ao Curso de Pós- Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito à obtenção do título de Mestre em Ciências Humanas - especialidade Direito. Orientador: Prof. Dr. Cesar Luiz Pasold. Florianópolis: UFSC, 1993. Disponível em https:/ / repositorio. ufsc. br/ bitstream/ handle/ 123456789/ 106371/ 93138. pdf?sequence= 1& isAllowed= y. Acesso em 20 mai 2020.
8 NALINI, José Renato. É urgente construir alternativas à justiça. In: ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios adequados de solução de conflitos. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 29.
9 NALINI, José Renato. É urgente construir alternativas à justiça. In: ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios adequados de solução de conflitos. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 30.
10 SAID FILHO, Fernando Fortes. A crise do poder judiciário: os mecanismos alternativos de solução de conflitos como condição de possibilidade para a garantia do acesso à justiça. Revista da AJURIS – Porto Alegre, v. 44, n 142, junho/ 2017, p. 179- 180. Disponível em http:/ / www. mpsp. mp. br/ portal/ page/ portal/ documentacao_ e_ divulgacao/ doc_ biblioteca/ bibli_ servicos_ produtos/ bibli_ informativo/ bibli_ inf_ 2006/ Rev- AJURIS_ 142. 07. pdf. Acesso em 25 mai 2020.
duais contra o Poder Público também transbordam nos escaninhos das varas judiciais, massificadas e estimuladas pelos próprios advogados –exigindo do Judiciário enfrentamento a questões que seriam tradicionalmente deliberadas de forma geral, em âmbito administrativo11 .
O resultado é contraditório: sobrecarregados, e servindo como a única resposta para todo e qualquer conflito, os tribunais brasileiros compensam o fluxo imenso de processos judiciais com uma sensível piora na qualidade e na profundidade dos debates e dos votos12, e o que é pior: cada vez mais se assiste a institucionalização de práticas que (até então, se restringiam ao imaginário folclórico pretoriano) escancaram a monocratização dos julgamentos colegiados. Isso quando não se vê, como prática costumeira em diversos tribunais, o estabelecimento de orientação no sentido de decidir monocraticamente o mérito recursal, alçando a colegialidade a verdadeiro artigo de luxo nos Tribunais13 .
Para piorar, o STF e os tribunais superiores foram cultivando o – irritante – hábito de não julgarem o mérito recursal – realidade que o atual Código, por meio do princípio da primazia do julgamento do mérito, busca de alguma maneira desconstruir ao positivá-lo como norma fundamental14
Não se pode ignorar que, na média, a formação jurídica do atual exército de 1.300.125 (um milhão trezentos mil cento e vinte e cinco) advogados15 é de questionável qualidade – e que certamente a deficiência técnica na elaboração de peças recursais destinadas ao STJ e ao STF impacta na qualidade e na celeridade dos trabalhos das Cortes. Aliás, essa massa de “combatentes jurídicos” não saiu dos bancos escolares com o intuito de resolver conflitos de forma criativa, mas sim de litigar
no sentido de praticamente parametrizar o seu sucesso profissional ao número de causas conduzidas pelo seu escritório.
11 BARROSO, Luís Roberto. A judicialização da vida e o papel do Supremo Tribunal Federal / Luís Roberto Barroso. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
12 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 73.
13 Esse fenômeno tem afetado até mesmo julgamentos de competência originária do STF, relativamente as suas prerrogativas de Corte constitucional, como se vê na crescente monocratização de decisões em sede de ADI e ADPF. In: ARGUELHES, Diego Werneck. HARTMANN, Ivar. A monocratização do STF: Tribunal delega cada vez mais poder para decisões individuais em ADIs e ADPFs. Jota. info. Publicado em 03 ago 2015. Disponível em https:/ / www. jota. info/ opiniao- e- analise/ artigos/ a- monocratizacao- do- stf- 03082015. Acesso em 07 jun 2020.
14 CÂMARA, Alexandre Freitas. O princípio da primazia da resolução do mérito e o Novo Código de Processo Civil. Gen Jurídico, 07 out 2015. Disponível em http:/ / genjuridico. com. br/ 2015/ 10/ 07/ o- principio- da- primazia- daresolucao- do- merito- e- o- novo- codigo- de- processo- civil/ . Acesso em 07 jun 2020.
15 Referido número foi obtido em 25 de setembro de 2022, através do site https:/ / www. oab. org. br/ institucionalconselhofederal/ quadroadvogados, que é atualizado diariamente.
Ao mesmo tempo, os ventos da pós-modernidade16 nos fizeram perder a capacidade de compreender a existência de dificuldades reais da vida. A mesma situação da vida cotidiana que, para a geração passada, não passava de mero dissabor, escandaliza a atual. O que se buscava amigavelmente resolver em outros tempos, transforma-se com grande rapidez em litígio. As relações interpessoais são cada vez mais líquidas, niilistas, fugazes, os conflitos surgem em massa, do imediatismo, da ansiedade, da incerteza, do Prozac e das metanfetaminas, dos viajantes aéreos, dos crimes de plástico, da internet das coisas (internet of things).17 Ninguém mais tem tempo a perder: nem as partes, nem os advogados, muito menos o Judiciário.
Daí porque a judicialização da vida reflete a visível postura adotada tanto pelo STF quanto pelos Tribunais Superiores – sobretudo o STJ, sem a proteção da repercussão geral – no sentido de não julgar. Criou-se um imenso labirinto prévio a análise do mérito recursal, com o deliberado objetivo de negar seguimento, monocraticamente, aos milhões de recursos que aportam àquela Corte anualmente.
Esta dinâmica tende apenas a retroalimentar ainda mais incerteza jurídica: sem a necessária uniformização jurisprudencial, inúmeras matérias seguem sendo postuladas perante os Juízos de primeira instância, abarrotando o fluxo de trabalho de servidores e magistrados com demandas repetitivas.
O cenário é desolador, e as reclamações são as mesmas há décadas. As medidas legislativas e as iniciativas autogeridas pelo Poder Judiciário, adotadas ao longo das últimas décadas, não foram capazes de alterar, estruturalmente, o sistema judiciário no país18 – e é realmente impressionante a quantidade de alterações que foram promovidas no Código Buzaid, a ponto de se permitir afirmar que, já no CPC revogado, havia um novo sistema recursal civil completamente distinto daquele concebido por Alfredo Buzaid. As principais alterações processuais imprimidas ao então Código de Processo Civil (tais como a citação postal
16 É de Zygmunt Bauman a cunhagem da expressão “modernidade líquida”, que dá a tônica de uma série de obras de sua autoria, relacionadas a análise da sociedade pós- moderna. No que é pertinente para estas reflexões iniciais, Bauman preleciona que “a nova instantaneidade do tempo muda radicalmente a modalidade do convívio humano - e mais conspicuamente o modo como os humanos cuidam (ou não cuidam, se for o caso) de seus afazeres coletivos, ou antes o modo como transformam (ou não transformam, se for o caso) certas questões em questões coletivas”. (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 147).
17 BRASIL, Guilherme Maciulevicius Mungo; RIBAS, Lídia Maria. Mediação de conflitos coletivos: adequando o acesso à justiça aos conflitos pós- modernos. Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas. Santo Ângelo, v. 19 n. 35, p. 59- 78 set. / dez. 2019. DOI: http:/ / dx. doi. org/ 10. 31512/ rdj. v19i35. 2918. Acesso em 09 jun 2020.
18 THEODORO JUNIOR, Humberto. Celeridade e efetividade da prestação jurisdicional. Insuficiência da reforma das leis processuais. Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Jun 2004. Disponível em http:/ / www. abdpc. org. br/ artigos/ artigo51. htm#_ ftnref24. Acesso em 07 jun 2020.
como alternativa à expedição de mandado para oficial de justiça (Lei n.º 8.710/93), introdução da tutela antecipada e tutela da obrigação de fazer/ não-fazer (Lei n.º 8.952/94), inserção de debêntures, escrituras públicas e instrumentos de transação referendados pelo Ministério Público, Defensoria Pública ou advogados dos transatores (Lei n.º 8.953/94) a ação monitória (Lei n.º 9.079/95), a interposição de agravo de instrumento direto para o tribunal (Lei n.º 9.139/95), o reexame necessário e os embargos infringentes (Lei n.º 10.352/01), a tutela de entrega de coisa e a audiência preliminar (Lei n.º 10.444/02), o processo sincrético (Lei n.º 11.232/05), o julgamento liminar de improcedência (Lei n.º 11.277/06), a reforma no processo de execução extrajudicial (Lei n.º 11.382/06), a Súmula Vinculante (EC 45/2004 e Lei n.º 11.417/06), a Repercussão Geral (EC 45/2004) e o rito dos recursos extraordinários/especiais repetitivos (Lei n.º 11.418/06), além da nova disciplina para o agravo em REsp, positivada pela Lei n.º 12.322/10), são reflexos da tentativa de salvar a dinâmica judiciária nos vinte anos que antecederam a sanção do PL 8046/2010 (PLS 166/2010), que gerou a Lei n.º 13.105/15, denominada Código de Processo Civil.19
O serviço público consistente na entrega da prestação jurisdicional foi, por muito tempo, considerado plenipotenciário, bastante em si, e pouco analisado sob a ótica econômica da escassez; pelo contrário, enxergado estritamente pela ótica qualitativa das decisões pautada pelos interesses estatais de pacificação social e de proteção do direito objetivo.20
À revelia das crises econômicas e das medidas de austeridade, o Judiciário segue expandindo (jamais retraindo) seus gastos correntes em nome da efetividade da tutela jurisdicional e da segurança jurídica, para fazer frente a um contingente cada vez maior de litigantes estimulados pela gratuidade da justiça (abstraindo as responsabilidades pelo custeio dos processos judiciais) e, principalmente, em busca de suprimento judicial para a carência de serviços básicos prometidos pelo próprio Estado. A esse momento paradoxal, dá-se o nome Era da Indulgência, em que gastamos imensa quantidade de dinheiro público para viabilizar o acesso à Justiça que, no entanto, acaba por ser meramente formal, na medida em que a efetividade da tutela é continuamente frustrada pelo
19 MIRANDA DE OLIVEIRA, Pedro. Novíssimo sistema recursal conforme o CPC/ 2015. 3. ed. rev., ampl. e atual. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 32- 37.
20 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. 2. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 118.
próprio “acesso à Justiça”; e a morosidade da Justiça sobrecarrega, mais e mais, os cofres públicos com gastos desnecessários.21 Isso acabou gerando um problema de fluxo: o estoque de processos judiciais foi crescendo em larga escala, em decorrência dos estímulos à litigância em detrimento da pacificação social – ao passo que a produtividade em números deixou de acompanhar a demanda.22 Daí porque se permite afirmar que a Justiça, enquanto representativa de uma miríade de órgãos estatais temáticos que, por seu turno, se destinam a prestar serviço público de atividade jurisdicional, é bem comum – o que subjuga a Justiça brasileira ao fenômeno econômico da “tragédia dos comuns” (no original: tragedy of the commons),23 e propicia a cunhagem da expressão “tragédia da justiça”24 para a adjetivação do cenário a ser enfrentado.
O antídoto é a cooperação como poderoso instrumento de transformação da cultura jurídica para vencer a tragédia da exaustão da prestação judicial.25 A despeito de sua formatação extensa e detalhista tal como o revogado CPC de 1973, é evidente que a Lei n.º 13.105/2015 não foi editada para meros fins de reorganização das últimas inovações legislativas. Há um objetivo claro e definido: conduzir mudanças culturais frente a posturas paradigmáticas enraizadas há muito tempo na processualística brasileira, mediante a construção de um sistema que viabilize, pela via da cooperação e da busca pela solução consensual dos conflitos, a entrega da tutela de direitos justa, tempestiva e efetiva.26
Isso implica em (conferir) efetividade ao processo – elemento extremamente caro à análise da public law litigation, conforme se verá com mais profundidade nos capítulos 3 e 4. Aqui, o objetivo inicial é de deli-
21 GIDI, Antonio; ZANETI JR. Hermes. Brazilian Civil Procedure in the ‘Age of Austerity’? Effectiveness, Speed, and Legal Certainty: Small Claims, Uncontested Claims, and Simplification of Judicial Decisions and Proceedings. Revista Brasileira de Direito Processual Civil – RBDPro, ano 24, n. 95. Belo Horizonte, jul. / set. 2016, p. 53.
22 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2019. Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2019.
23 Que remete a utilização comunal de bens comuns em níveis de descontrole e fruição excessiva que geram o esgotamento destes bens antes que fosse possível. (HARDIN, Garrett. The Tragedy of the Commons. Science, vol. 162, n. º 3859 (13 dez 1968). Disponível em https:/ / science. sciencemag. org/ content/ sci/ 162/ 3859/ 1243. full. pdf. Acesso em 15 jun 2020).
24 Expressão utilizada por Erik Navarro Wolkart para definir sua pesquisa em torno da análise econômica do processo civil. Vide: WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 29.
25 SANTOS FILHO, Hermílio (Coord.); TIMM, Luciano Benetti (Cocoord.). Demandas judiciais e a morosidade da Justiça civil: diagnóstico sobre as causas do progressivo aumento das demandas judiciais cíveis no Brasil, em especial das demandas repetitivas, bem como da morosidade da justiça civil: relatório final ajustado. Porto Alegre: PUCRS, 2011. Disponível em https:/ / issuu. com/ cnj_ oficial/ docs/ rel_ _ torio_ sobre_ as_ demandas_ judici. Acesso em 15 jun 2020.
26 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 29.
near em que condições a “arena judiciária” se encontra para recepcionar litígios de interesse público.
1.1.1Osnúmerosnãomentem:aJustiçabrasileiranarealidade dos dados oficiais
A apresentação dos dados coletados anualmente acerca da Justiça brasileira revela, em números, o diagnóstico que se promove diuturnamente na prática forense. Todavia, é no aspecto analítico destes números que se permite compreender quais foram/são os comportamentos cooperativos potencialmente redutores da chamada litigância frívola.27
Faz-se necessário, portanto, não apenas analisar as bases teóricas da cooperação, das convenções processuais e da flexibilização procedimental pelo estrito ponto de vista jurídico, mas também de compreender que tal como a ciência política, a psicologia, a sociologia e demais campos de estudo e análise científica das várias nuances da interação humana, o Direito, ainda que como disciplina autônoma, precisa se conectar com as ferramentas disponibilizadas pela ciência econômica. O jurista não pode formular suas teorias e hipóteses sem se preocupar com postulados básicos de probabilidade e inferência estatística.28
Adam Smith, aliás, já abordava a existência da natural interação entre o Direito e a Economia, relativamente ao papel desempenhado pelas leis na promoção do bem-estar da sociedade.29 A aversão dos juristas à análise estatística é sintomática: não por menos que com o advento do chamado welfare state, tem-se assistido a uma perda de protagonismo dos bacharéis em Direito para os economistas na formulação das políticas estatais.30 Não por menos, aliás, que mesmo com o êxito de George Bush na Guerra do Iraque, em 1991, o marqueteiro do então candidato
27 TRIGUEIRO, Victor Guedes. BORGES, João Paulo Resende. Análise econômica da litigância: pressupostos básicos e o CPC de 2015. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro. Ano 13. Volume 20. Número 2. maioagosto de 2019, p. 313- 338. Disponível em https:/ / www. e- publicacoes. uerj. br/ index. php/ redp/ article/ view/ 44561/ 30281. Acesso em 26 abr 2020.
28 FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo civil e análise econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 25.
29 Ao prefaciar a obra de Luiz Fux e Bruno Bodart, o ex- ministro da Fazenda Joaquim Levy faz brilhante referência à obra Lectures on Jurisprudence (cópia em pdf digitalizada pelo Google, como parte de um projeto global de disponibilização de obras de domínio público – em http:/ / index- of. co. uk/ Various/ Lectures% 20on% 20Jurisprudence% 20Austin. pdf, a partir do acervo da Harvard College Library). Nela, referente a uma série de palestras proferidas em 1762- 1763 por Adam Smith na Universidade de Glasgow, o iluminista escocês apresentou sua teoria acerca das regras pelas quais o governo civil deve ser dirigido – nelas, a de primordialmente preservar a justiça, sendo o seu objeto a garantia da segurança jurídica. Para Smith, o Estado deve proteger os indivíduos quanto aos direitos da personalidade, propriedade, reputação e das relações sociais.
30 TEDESCHI, Augusto Guimarães; DEBONI, Guilherme de Magalhães. Histórico e perspectiva do ensino jurídico no Brasil. Papel do profissional de Direito deve se transformar neste século ainda nas suas primeiras décadas. Jota. info Artigo publicado em 27 abr. 2018. Disponível em https:/ / www. jota. info/ opiniao- e- analise/ artigos/ historico- eperspectiva- do- ensino- juridico- no- brasil- 27042018. Acesso em 20 jun. 2020.