A INFÂNCIA E A DOR
A infância é o tempo das descobertas simples: o sabor doce de um bolo caseiro, o som das gargalhadas que ecoam no corredor, a sensação de segurança que só os braços de quem cuida sabem dar. Mas também é nessa idade que as primeiras sombras podem surgir, quando a inocência é testada e a vida começa a ensinar, demasiado cedo, que nem todas as histórias de criança têm finais tranquilos.
A minha infância foi cheia de amor e dor. Desde muito nova, soube que conhecia os dois mundos. Conhecia a luz e conhecia a escuridão. Em casa, havia muitos momentos de escuridão. Havia muito abuso, todo o tipo de abuso. Mas depois havia momentos de luz. O
povo português, como sabem, é muito afetuoso. Havia por isso muito carinho das tias, tios e primos. Tínhamos uma família grande e havia sempre encontros familiares. Todos os fins de semana havia uma festa de família. O meu pai era músico, um músico português, e por isso estávamos em muitas festas. Todos os fins de semana era festa. Por isso havia muito amor e carinho, mas havia muito abuso e escuridão. Por isso conhecia os dois mundos, e era confuso. Era confuso porque eu não sabia qual deles era real.
E eu sabia, quando era uma menina, que a minha vida era diferente. Eu sabia que eu era diferente. Sabia que a nossa família era diferente. Pensei que éramos os únicos a ter esta vida de luz e escuridão. Mais tarde percebi que não era a única. O abuso que enfrentámos e que suportámos vinha dos dois lados. O lado da minha mãe era extremamente abusivo. A minha mãe era verbal, física, mental e emocionalmente abusiva. E isso começou desde que me lembro. E depois, o meu pai também era abusivo de formas diferentes.
Quando penso na minha infância, tudo fica muito confuso, porque o meu pai era extremamente amoroso e eu acredito, e como adulta posso dizer isto com confiança, que o alcoolismo destruiu-o. Teve um enorme impacto em quem ele era, ou nas duas pessoas que ele representava: havia o pai sóbrio e depois o pai bêbado. Quando penso em tudo o que vi, tudo o que testemunhei e tudo o que eu… não sei como que sobrevivi a tudo o que vivi enquanto era menina pequena. Eu não conhecia Deus, nessa altura. Não conhecia Jesus, nessa altura. Mas agora sei que foi por causa de Deus que consegui sobreviver.
SAIR DE CASA, PARA UMA VIDA AINDA MAIS DIFÍCIL
O começo da adolescência e o fim de um ciclo que deixou marcas para todo o sempre. Mas a vida continuou a desafiar a força e tenacidade de Elizabeth.
No meu 14º aniversário, o meu pai mandou-me ao médico porque algo estava a acontecer.
Acabei numa consulta e disse ao médico o que se passava em casa, e ela disse que não me podia deixar ir para casa, que tinha de chamar a Segurança Social, porque era a sua responsabilidade proteger-me. Esse dia mudou o rumo da minha vida.
Não me deixaram ir para casa, e quando voltei mais tarde nesse dia, o meu mundo desmoronou-se. O meu pai foi levado, os meus irmãos e eu fomos separados. Em poucos dias, fui colocada em famílias de acolhimento. Também os meus irmãos foram levados, e ficámos separados durante muito tempo.
Nos primeiros seis meses em acolhimento, vivi em mais de dez casas diferentes porque fugia de muitas delas. Arranjava problemas, era expulsa, envolvia-me em coisas em que não devia, em atividades criminais e na companhia errada.
O que devia ter sido o melhor dia da minha vida, porque estava a ser tirada da dor, do abuso, foi na realidade o pior dia. Carreguei durante anos a culpa de ter separado a minha família, de ter sido a razão de tudo o que aconteceu. Nem sabia que carregava essa culpa até há pouco tempo.
Durante os anos em acolhimento, entre casas diferentes, fugia de uma casa e vivia na rua. Havia noites em que andava no metro até às duas da manhã, e depois era expulsa, e andava a pé pelas ruas da cidade até encontrar um sítio para ficar. Tinha alguns amigos, em casa de quem podia ficar uns dias, mas também houve muitos dias em que não tinha onde dormir e passava a noite em escadas ou garagens.
Conheci o pai do meu filho enquanto vivia numa casa de acolhimento. Basicamente, fui de um homem abusivo para outro abusivo. Ele lembrava-me muito o meu pai, era um lugar familiar. Apesar de ser extremamente abusivo, física e mentalmente. Tive ossos partidos e feridas de faca, mas acreditava que ele fazia aquilo porque me amava. Pensei que o meu pai batia na minha mãe porque a amava, porque tinha ciúmes, que fazia aquilo porque se importava. E era isso que o meu parceiro fazia. Tinha 14 anos quando o conheci e acreditei que ele fazia aquilo porque me amava. Fiquei nessa relação quase seis anos. Fiquei grávida aos 16, foi uma gravidez difícil, mas acredito que foi um presente de
1. QUATRO IRMÃOS: JOHN,ELIZABETH, SUZIE E SONI
2. MOMENTOS DE CELEBRAÇÃO EM FAMÍLIA: ELIZABETH (À DIREITA), COM O PAI AO LADO E A AVÓ AO CENTRO.
3. ELIZABETH COM ALGUNS DOS SEUS ALUNOS.
Deus, a minha salvação. Para mim, ter um filho foi uma alegria imensa. Desde os 5 ou 6 anos pensava em ser mãe. Lembrava-me de pensar que, quando fosse mãe, ia amar muito os meus filhos, ia beijá-los, abraçá-los. A minha mãe nunca me beijou nem me abraçou, até hoje não tenho essa memória. Por isso, desde pequena pensava em dar esse amor ao meu filho.
Quando tive o meu filho, estava a viver numa casa de acolhimento, sem nada, mas havia algo naquele bebé dentro de mim que sabia que ia salvar a minha vida. Não pensava nas dificuldades que ia enfrentar, e acho que foi por isso que consegui passar por tudo o que passei. A família do pai do meu filho era grande e acolhedora. Eles tiraram-me do acolhimento e viam-me como filha. A avó do meu filho foi uma mulher que me mostrou amor. Ela dizia que ia cuidar de nós, que ia sempre haver um lar. A violência até piorou após o nascimento do meu filho, mas nunca me arrependi de o ter tido.
DO SONHO À REALIDADE
A escolha de vida profissional de Elizabeth Correia foi sendo marcada pelos diferentes desafios que ia enfrentando. No fim de contas, tudo acabou por bater certo, juntando sonhos com a experiência adquirida, às vezes da pior forma possível.
Durante muitos anos, quis ser professora quando era menina. Alinhava as minhas bonecas e sentava-as em frente a mim, como se estivessem numa sala de aula. Escrevia notas, dava-lhes trabalhos para casa. Esta boneca estava a portar-se mal naquele dia, esta outra tinha um papel na sala, todas tinham uma função. Comecei a fazer isto quando tinha talvez cerca de três anos e usava almofadas porque não tinha muitas bonecas. E realmente acreditava que ia ser professora. Os meus professores diziam-me que eu ia ser uma professora incrível.
Quando tinha cerca de 15, 16 anos, estava frequentemente nos tribunais. Houve muitas batalhas legais com os meus pais. Na verdade, começou desde muito nova, acho que com 11 ou 12 anos, quando os meus pais se separaram e
lutavam pela custódia dos filhos - éramos quatro. Quando comecei a frequentar os tribunais, comecei a dizer que queria ser advogada, e a minha família e amigos diziam: "Oh meu Deus, vais ser uma advogada incrível!" Porque eu era argumentativa, dizia que as coisas eram assim e ponto final, não havia negociação. Então, por muitos anos, quis ser professora, depois quis ser advogada, e até quis ser padre.
Durante tantos anos pensei que não teria hipótese de ser professora, advogada ou de seguir os meus sonhos e paixões. Fui uma excelente corredora de atletismo, e houve um tempo em que pensei ser atleta profissional. Todos estes sonhos que tinha quando era criança, desapareciam porque eu sempre pensava que era um desastre e que não merecia nada de bom. Mas mais tarde na vida, quando comecei a trabalhar na minha cura, voltei a estudar, comecei a partilhar a minha história e a ir à igreja, batizei-me de novo, percebi que tudo o que quis ser quando era menina e tudo em que acreditei que seria, acabei por ser, mas não da forma ou do modo que pensei.
Trabalho no conselho escolar, sou palestrante, trabalho com jovens como oradora de empowerment juvenil. Não sou professora, mas para mim o meu papel é ainda maior e mais importante, porque posso trabalhar um a um com estes estudantes, posso ligar-me a eles, partilhar com eles, abraçá-los. Posso ser alguém que um professor comum não consegue ser. Foi uma benção não me ter tornado professora de Inglês ou História, como pensava que ia ser.
O INESPERADO E O PERDÃO
No silêncio abrupto da vida, quando menos esperamos, o corpo fala em urgência e o tempo comprime-se numa corrida contra o desconhecido. Entre convulsões e incertezas, o medo e a esperança entrelaçaram-se num fio ténue que conduziu a uma nova visão de perdão e cura.
Quando estava na casa dos 30, já divorciada e a criar dois rapazes, o mais novo tinha cerca de quatro anos. Um dia, comecei a ter convulsões uma atrás da outra e fui levada às urgências. Fizeram-me muitos exames, ressonâncias e
TACs, e descobriram um tumor no cérebro. Eu não sabia que tinha um tumor.
Foi uma cirurgia de emergência de cinco horas no mesmo dia em que soube do tumor. Não houve tempo para pensar, para processar, porque estava a ter as convulsões. Pensei que talvez fosse epilepsia porque a minha cunhada tinha essa condição. Quando me disseram que tinha de ser operada de urgência e transferida para outro hospital, não consegui acreditar, parecia um sonho estranho. Estava em choque, como se estivesse a flutuar, era difícil de descrever. Disseram-me que havia 75% de chance de ficar com sequelas - perder a memória, a fala, a capacidade de andar - e tive de assinar documentos a reconhecer os riscos. Saí da cirurgia e cinco horas depois conseguia falar, ouvir e reconhecer vozes. Foi um sucesso enorme. Esta cirurgia mudou a minha vida profundamente, especialmente em relação a cuidar de mim mesma. Quando descobri o tumor, o médico disse que não sabem como surgem os tumores cerebrais, mas talvez tenha sido o stress da infância. Quando ouvi isto, comecei a chorar, pensando que aquilo crescia dentro de mim há tantos anos.
Uma das maiores lições que tirei desta experiência foi o poder do perdão. A minha forma de olhar para o meu pai, para a minha mãe, para o meu ex-marido e para todos os que me magoaram mudou. Olhei para tudo e para todos com paz.
Passei a pensar no que os meus pais sofreram na infância, nas suas histórias. Comecei a acreditar que me deram o que tinham para dar. Perdoo o meu pai, porque sei que o álcool teve um impacto grande nas decisões que tomou. No fundo, sem o álcool, ele era um pai amoroso, cuidadoso, que me transmitiu valores que tenho hoje: tratar as pessoas com bondade, perdoar, dar, ser servidora. Ele fazia rir as pessoas, ajudava muitos, foi uma influência positiva na comunidade. Sei que isto pode parecer estranho para muitos: como pode alguém ser abusivo e ao mesmo tempo amoroso? Mas fora do álcool, ele era outra pessoa.
Quanto à minha mãe, nunca tive uma relação saudável com ela. Talvez por causa de algo em mim ou porque o meu pai me favoreceu enquanto menina, não sei. Mas ela nunca se ligou a mim nem às minhas irmãs. Perdoo-a
1. No dia da sua cirurgia, com um dos seus neurocirurgiões
2. Os filhos da Elizabeth, Captain e Keeno.
3. Elizabeth com Captain.
4. Elizabeth com Keeno.
pela falta de amor que me deu, por nunca me ter ensinado a ser mulher, por não me ter abraçado, beijado ou dito que me amava. Perdoo-a porque ela própria nunca recebeu amor na sua infância.
A MAIOR DOR DO MUNDO
Há momentos que mudam tudo num só segundo. Perdas que roubam o ar, notícias que cortam o chão debaixo dos pés. Nessas alturas, o tempo parece parar, e cada dia se torna uma luta silenciosa para continuar. É quando a dor se instala, mas também quando se descobre uma força que não se sabia ter. São os capítulos mais duros, mas também os que revelam o tamanho da resiliência.
Eu pensava que tinha uma vida difícil, mas nada se compara a perder o meu filho. Pensei que ia morrer de dor, que não ia sobreviver. Houve muitas coisas na minha vida em que algumas pessoas teriam desistido, mas eu nunca desisti. Sempre encontrei força para continuar, para sobreviver. Mas esta perda foi diferente. Pensei que ia morrer de coração partido, que ia morrer a dormir. Tinha medo de adormecer, de ir para a cama. Ele era muito mais do que o meu filho, era o meu parceiro de vida, a minha alma gémea, o meu melhor amigo.
Estou a viver um luto que é muito mais do que perder um filho, é perder 32 anos da minha vida com ele. Porque a vida sem ele… quando tinha 16 anos, a minha vida era difícil e dolorosa, mas não penso muito nisso porque ele trouxe-me tanta alegria e propósito. Foi ele quem me deu sentido.
Por muito tempo pensei que nunca mais ia voltar a falar, a ser oradora motivacional, a fazer o que fazia. Mas o meu filho começou esse trabalho comigo. Ele fez parte da minha caminhada para me tornar palestrante, para escrever o meu livro, para mudar vidas e para fazer este trabalho. Quando penso em desistir, lembro-me de duas coisas: do que ele gostaria para mim, e do meu filho mais novo, porque continuo a ser mãe e amo os meus dois filhos igualmente. Eles precisam de mim - um no plano espiritual para continuar o trabalho
e ser feliz, e o meu filho vivo precisa que eu seja uma mãe alegre, que cuide de mim e que viva outra vez.
Ainda tenho um propósito, não só para mim e para o que Deus quer que eu faça como mãe. E digo isto sabendo que é uma luta diária. Tenho gatilhos todos os dias. Esta manhã, quando estava a conduzir, passou uma ambulância e não a ouvi a chegar. Quando ouvi, foi como um choque muito forte, e comecei a chorar descontroladamente. Tenho muitos gatilhos todos os dias. É uma luta para continuar, para viver, para fazer o que fazia antes. Estou a aprender a deixar ir quem eu era, porque essa pessoa morreu também. Tenho estes novos gatilhos, novos sentimentos, novas coisas com que lidar. Estou a conhecer esta mulher nova e tenho de aprender a viver com ela. É muito difícil, mas acredito que se Deus não achasse que eu podia aguentar, não me dava este fardo. Talvez nunca perceba porque o meu filho teve de morrer num acidente, mas estou aqui e faço tudo o que puder para ajudar mulheres que estão a passar por traumas e luto. Talvez por isso esteja aqui.
Se algum dia duvidei da minha missão, não duvido mais. Não acredito que a minha vida seja um acidente ou uma maldição, ou que tenho de sofrer sem sentido. Não penso nem sinto isso, nem me vejo como vítima. Acredito que fui chamada para fazer a obra de Deus, como mensageira, curadora, seja falando, aconselhando, mentorando, ouvindo. Sei que fui chamada para curar, para ver o melhor nas pessoas, para trazer o melhor delas, para inspirar e ajudar mulheres a verem o melhor em si próprias, a descobrirem os seus dons e o seu propósito. Por que estão aqui, por que certas coisas aconteceram... Sem dúvida que essa é a minha missão nesta vida.
A FORÇA DE RECOMEÇAR
Depois da tempestade, há sempre um silêncio. E, nesse silêncio, germina a vontade de recomeçar. É o tempo de voltar a acreditar, de reconstruir com mais sabedoria e menos pressa. Não se trata de esquecer o passado, mas de aprender a caminhar com ele ao lado, sem deixar que pese demais. É aqui que Elizabeth
encontra novas razões para sorrir, novos caminhos para seguir e a certeza de que, apesar de tudo, vale sempre a pena viver.
Quando passei por todo o trauma e abuso da minha família, durante muitos anos evitei a cultura portuguesa. Não queria saber dela, dos namorados portugueses ou da família. Durante cerca de 20 anos, entre a adolescência e os vinte anos, não quis nada com a cultura portuguesa.
Depois, com o nascimento do meu segundo filho, arrependi-me de não me ter ligado mais à cultura. Queria aprender, experimentar Portugal. Como adulta, a fazer trabalho pessoal e desenvolvimento, queria ir a Portugal. Fui lá há cerca de 18 anos, depois outra vez oito anos depois, e em outubro de 2024 fui pela terceira vez, quase dois anos depois da morte do meu filho. Fui com uma missão diferente, com outro propósito.
O meu filho era mochileiro, viajou por mais de 30 países, morreu num acidente de carro aos 30 anos. Viveu uma vida cheia de aventura e viagens. Portugal era o seu lugar favorito, esteve lá mais vezes do que eu. Ele dizia-me muitas vezes que queria viver em Portugal um dia. Fui a Portugal para me ligar a ele, para sentir algo espiritualmente. Foi uma experiência linda. Fui como mulher a chorar o filho, mas com o coração aberto, a mente aberta e o espírito aberto. Não queria voltar para o Canadá. Gostei das pessoas, da comunidade, do amor, da comida, da música, da energia. Não queria vir embora.
Vi muitas coisas incríveis em Portugal, senti-as e pensei que se estivesse lá, nunca queria sair. Sei que todos dizem isso, mas tenho amigos que vivem lá no inverno e cá no verão e preferiam ficar em Portugal se pudessem. A minha experiência com Portugal e os portugueses, mulheres, homens, jovens, idosos, foi linda, porque já não sou aquela menina quebrada, vítima do trauma e da cultura, da família.
Curei-me disso. Fui a Portugal não como vítima, mas como mãe em luto, cujo filho amava Portugal.
Gostaria de ter uma casa pequena lá, talvez na Madeira, em São Miguel ou Ponta Delgada, porque gosto muito da comunidade. Gostaria de ter uma casa de férias lá.
FOTO: MIKE NEAL