

A história está nas mãos
Mariana Jones, texto
Evelina Oliveira, ilustração
Dedico sempre às minhas filhas, Laura e Maria Clara.
Agradeço ao Município de Valongo por confiar nas minhas palavras e à minha Evelina por as ilustrar.
Agradeço à D. Lininha (e sua família) que através das suas mãos me levou a contar esta história.

Texto: Mariana Jones
Ilustração: Evelina Oliveira
Revisão: Ana Isabel Pinto
Editor: Câmara Municipal de Valongo
ISBN: 978-989-352-63-9-2
Dep. Legal: XXXXX/25
Tiragem: 300 exemplares
Valongo, junho de 2025

A história está nas mãos
Mariana Jones, texto Evelina Oliveira, ilustração
Mariana Jones
Ficha Técnica Título: A história está nas mãos

Os mini-Lusíadas de Valongo
Não é por serem acessíveis a crianças que os livros perdem dimensão.
A depuração da mensagem, o trabalho de simplificar em palavras luminosas conteúdos complexos, pode produzir textos sublimes, como certos poemas nos lembram constantemente.
Se é assim nas palavras, também o é nas imagens. Afirmou Pablo Picasso, o mais famoso pintor do século XX: “Levei quatro anos para pintar como Rafael, mas uma vida inteira para pintar como uma criança”. É muito raro atingir os privilégios da simplicidade, comunicar em poucos traços, ou frases, de forma eloquente.
Creio que este nível foi muito bem atingido por “A História Está nas Mãos”, um livro infantil para todas as idades. A sua narrativa recua ao fundo dos tempos, ao Paleozoico e às trilobites que habitaram o território valonguense. Tem como fio condutor a memória de uma jovem: começa num passado não muito distante e, através de reminiscências e da história, visita literariamente as marcas distintivas de Valongo ao longo do tempo.
A presença romana e a mineração do ouro. Os rios e serras de Valongo com as suas trilobites . A lousa e os brinquedos. A regueifa e os biscoitos. Os comboios e a festa da Bugiada e da Mouriscada. O património e a fé na santa das causas impossíveis.
É uma pequena epopeia, uma espécie de mini-Lusíadas de Valongo. Um livro identitário, uma narrativa com calor, com sabor e com aromas. Qualquer valonguense transporta na memória afetiva o cheiro dos preparados de farinha que se cozem nos fornos da sua terra. E tem também uma história de amor.
Mariana Jones e Evelina Oliveira bem merecem este modesto tributo pela sua obra. Souberam captar, e transmitir com enorme bom gosto através da voz de uma menina, a alma valonguense. Bem hajam por isso.
José Manuel Ribeiro
Presidente da Câmara Municipal de Valongo
A história está nas mãos” nasce de um desafio: contar a história de Valongo a partir das nove logomarcas do concelho.
Reunir, de forma simples mas não simplista, os pontos que todos devem conhecer. Lembrar a tradição sem esquecer a contemporaneidade.
Neste espírito, a narradora surge sem nome, para que possa ser sempre o nome do leitor a contar esta história — na verdade, o nome de quem a continuará…
As mãos que a Dona Lininha me ofereceu foram as primeiras a guiarme: mãos de verdade, que abriram caminho a tantas possibilidades, mãos que recordam que a história de Valongo começou na serra e, como o rio, nunca mais parou. Inspirei-me nesta mulher de Valongo, que vendia pão no Bolhão, para lançar a narrativa. E, ao lado dela, surge José — apaixonado e depois marido — como símbolo da aliança que o próprio Presidente, José Manuel Ribeiro, firmou com o município. Escolhi o seu nome para evocar a paixão e o compromisso que sempre lhe reconheci ao longo do tempo.
Escrever para crianças é uma responsabilidade. Cada palavra pode transformar-se em património. Por isso agradeço a confiança de José e da sua equipa, que me deram este desafio — e esta descoberta — para sempre.
Mariana Jones


A história está nas mãos.
Não me lembro bem se comecei logo a comer regueifa e biscoitos, até mesmo antes de beber o leite da minha mãe.
Mas sei que, muitas vezes, o meu berço era um cesto cheio de sacos de farinha, ao lado do forno a lenha.




Todos dizem que esta história começou na serra, junto do rio Ferreira.
Na verdade, as maiores aventuras aconteciam lá. Desde há muitos anos. Muitos mesmo! Tantos, que ainda nem existiam dinossauros.

Naquela era, do Paleozoico, os mares cobriam tudo e as primeiras criaturas marinhas nadavam por ali, tranquilas. As trilobites, umas primas afastadas dos caranguejos, que pareciam uma fusão de baratas com centopeias, eram uma dessas primeiras espécies. Há fósseis delas espalhados pelas serras, pequenos tesouros ainda hoje lá escondidos. Estão impressos na lousa como se o tempo os tivesse carimbado com força naquelas pedras.
A minha mãe tem dois pedaços de rocha assim em casa. Consegue-se imaginar uma trilobite direitinha!



Já o ouro… ouro como se procurava no tempo dos romanos, não se vê. Durante o seu império, durante os mais de 400 anos, perfuravam muito nas minas, examinando todos os grãos de ouro que podiam aparecer.
Autênticos piratas, ainda que sem barcos.
Mas esta história… Esta história está toda nas mãos. Nas mãos dela, nas mãos da Lininha. As mesmas que o meu avô pediu em casamento.

O meu avô chama-se José. Era revisor da ferrovia. O comboio era um meio de transporte importante na altura. E o meu avô também se achava importante, mas perdeu a pose numa viagem de junho — uma que podia ter sido igual a todas as outras, não fosse a menina Lininha ter entrado na sua carruagem.

O senhor José pediu-lhe o bilhete. Ela não o encontrava, mas jurava tê-lo.
Nervosa e envergonhada, deixou cair os pães que trazia. E os biscoitos. Os biscoitos que tinha feito com a cunhada Laura para uma comunhão.
José sentiu-se embaraçado com a situação.
E, talvez, tocado pela emoção.
“Seria amor à primeira vista?”, disseram.
Foi a única vez que deixou passar alguém sem bilhete revisto.



A Lininha, ou Maria Lina, vestia-se com os mais
belos tecidos da época.
Vinte e duas viagens fez, sempre na mesma carruagem, sempre perto de José.

José já sabia de cor (sem nunca ter visto) onde ficava o forno da padaria, qual era a receita dos biscoitos, e a cor do vestido de bolas da sua única boneca.
Uma semana sem a ver.
Foi tudo o que bastou.


E depois de cinco anos de namoro casaram-se em Santa Rita, a santa das causas impossíveis.
Muitos iam até lá a pé, cumprir promessas, agradecer, ou pedir milagres.
A minha avó, filha e afilhada de padeiros, gostava mais da Santa Justa, mas uma boda grande era em Santa Rita. Assim aconteceu.
Eu, a última geração desta fornada, sempre lhe guardei o cheiro a biscoitos acabados de fazer. Um cheiro doce.


Já o meu avô libertava-se do negro da lousa nas viagens de comboio. E na educação que, através dela, lhe chegou.
E, agora, sou eu que estou aqui. Virada para o quadro de lousa, prestes a contar a história das serras.
Nestes quadros negros, tantas mãos aprenderam as letras e os números. Tantas vozes contaram sumários e desenharam histórias.
E, agora, é a minha vez.
As minhas mãos são brancas. Sem cortes. Mas dantes as mãos mostravam marcas de pequenas fissuras do metal. Material que sobrava era aproveitado, como latas de atum para construírem brinquedos. Nas épocas mais difíceis todos se reinventam, e a maior parte dos brinquedos deles, dos meus avós, mas também dos meus pais e tios, eram de metal ou de madeira. Eram feitos com as matérias mais acessíveis. Faziam carrinhos, pombas, paraquedistas, gregórios, relas, fisgas, piões…




As mãos dela, da avó, mostravam a farinha impregnada nas palmas e nas cutículas. Mostravam os altos e os calos que pareciam as serras com os famosos moinhos. E as linhas que podiam ser as do comboio que percorreu com o avô ou as do rio que a viu tantas vezes correr por perto.
Vamos recriar o piquenique tradicional na serra, mas eu já só penso na festa do dia 24 de junho. Não, não é o São João do Porto! É o São João de Sobrado, a festa da Bugiada e da Mouriscada. Finalmente já tenho idade e horário livre para participar, por isso este ano não vou perder nada.
As minhas mãos, que são brancas, sem cortes e sem unhas que se apresentem, tremem ligeiramente… Já tocou a campainha e o sino, é tempo de começar a história que agora tenho em mãos, a minha e a nova de Valongo.

Vou sair de casa, a casa que foi padaria e que tem um letreiro no muro que conta um bocadinho deste passado. Nesse mesmo muro branco ainda vemos uma argola. Essa argola segurava o burro, o animal que tantas vezes trouxe o meu tio-avô já a dormir, depois de um dia inteiro a distribuir pão pela cidade. E eu que podia jurar que só os cães e os gatos é que sabiam de cor o caminho para casa.

Vou sair desta serra que me desafia a trilhos saudáveis, desta pedra dura e negra que ficou tão maleável e clara rumo a uma nova aventura. Vou para fora do país.


Parto depois do piquenique onde toda a família se reunirá para se despedir. E já sei que haverá sopa seca, um doce que se faz com o pão que sobra, com açúcar e canela, para eu me lambuzar.
Tenho ainda tempo para ir ao Onomatopeia, o melhor festival de Literatura infantojuvenil que conheço. Um festival cheio de histórias, ilustrações, livros, crianças e autores.


No entanto, a festa dos Bugios e Mouriscos é a que aguardo com ansiedade, sobretudo para ver a dança em Casa do Velho da Bugiada! Uma dança feita ao ritmo dos tocadores da Bugiada com os seus violinos e violas braguesas, a primeira dança do dia desta festa.
Outros momentos que espero ver de perto são a Dança de Entrada dos Bugios e Mourisqueiros bem como a Prisão do Velho. Uma autêntica viagem no tempo.




Irei de Erasmus e acabarei a minha formação como professora de primeiro ciclo. Começarei a trabalhar com cada turma sempre com esta história da terra, que é a minha. Num quadro de ardósia para depois chegar aos novos, brancos e sem passado. Começarei com as letras desenhadas a lápis nos cadernos de linhas, antes de saltar para a escrita nos ecrãs com teclas.
E guardarei os dicionários, as enciclopédias e o globo. Afinal, só se faz um futuro livre se não apagarmos a história que está nas mãos!

