Jornal de Toronto #96

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Jorna Jornal de Toronto

Há um bairro brasileiro em Toronto?

É desafiador identificar e mapear todas as concentrações de brasileiros em Toronto, mas não surpreende que a região da Yonge St. e Eglinton Ave. já seja chamada de “Little Brazil”. p. 6

O que fazer quando a decisão da Imigração demora demais Embora paciência seja extremamente necessária, o direito canadense oferece meios jurídicos para contestar atrasos excessivos. p. 3

Saudações, patriotas canadenses

Tovar Júnior publica trecho de V. E. Lilith p. 4

p. 5

Nós imigrantes somos o problema?

aleXanDre DiaS raMoS

Sinto muita vergonha – vergonha alheia, é preciso dizer – de ter de escrever uma matéria tentando explicar que a imigração não é a causa dos problemas do mundo hoje, como temos lido em muitos lugares por aí. Cada vez mais, em conversas corriqueiras, escutamos alguém culpar o afluxo de imigrantes sobre a crise econômica, de moradia ou emprego no Canadá. Ironicamente, na maioria das vezes, quem fala é uma pessoa que imigrou ou é parente de alguém que imigrou para cá, e não se dá conta de que sua posição atual foi fruto da aceitação do país e das pessoas que aqui vivem. Vale (re)lembrar: a não

O retrato da religião no Brasil na última década

Em junho deste ano, o IBGE divulgou os números do Censo sobre a religião dos brasileiros. O país reúne uma das mais longas séries históricas do mundo nesse tema, o que nos permite acompanhar, década a década, com poucas interrupções, as transformações nas respostas à pergunta: “Qual é sua religião?”. p. 7

ser que você seja 100% indígena, todos no Canadá são filhos, netos ou bisnetos de imigrantes. Os indígenas desse país são os únicos que podem reclamar sobre a vinda de imigrantes para essas terras do norte – e motivos certamente não faltam para suas reclamações. Em outubro de 2017, escrevi um texto no Jornal de Toronto em que disse que, mesmo se todos os refugiados no mundo fossem aceitos para imigrar para o Canadá, ainda assim o país continuaria vazio. De lá pra cá, o número de refugiados no mundo dobrou, e ainda acredito que minhas contas valem. Em países com baixa taxa de natalidade e contínuo envelhecimento, os imigrantes são a única saída para que tudo continue funcionando, e isso inclui o sistema previdenciário – para usar apenas uma referência que os economistas conseguirão se identificar. Nós imigrantes não somos o problema, mas a solução. É claro que o sistema imigratório canadense, como o de vários países, é cheio de erros que precisam ser solucionados, não apenas na questão burocrática, mas também nos modos de análise, nos trâmites para validação de diplomas, no uso da tecnologia para diminuir o tempo de processamentos, e nos planos de estruturação para que os novos imigrantes se adaptem de forma consistente e harmoniosa na sociedade – e, nesse caso, claro, é preciso considerar a

Paul Couturier
Maria Mutch Paola Wortman

Chegamos no outono de 2025 e estamos vivos, e isso já é muito bom! Ainda teremos tempo pra ler essa edição antes do mundo acabar. Mas, como tudo é tão imprevisível, talvez ele não acabe, e dê tempo pra mais cafés e boas conversas com os amigos. Portanto, saia desse celular e vá encontrar as pessoas que você gosta, aproveite que ainda não está frio e curta o mundo real. Nós, aqui, seguimos na teimosia do papel jornal!

Essa edição ajuda a expurgar um pouco da culpa dentro de você: não, não é culpa sua, imigrante, pelos problemas no mundo; não, não vamos virar os Estados Unidos; sim, você pode rezar na religião que você preferir. Nosso país, felizmente, é diverso e nos ensina o tempo todo que é justamente na diferença que encontramos a comunhão. Para aqueles que não são muito afeitos à democracia, bastará cruzar a fronteira ao sul, onde infelizmente a intolerância tem prevalecido e onde parece ser Halloween o ano todo. Viva o Canadá! Viva Little Portugal! Viva Little Brazil!

O tempo, na maioria das vezes, é nosso amigo – ok, talvez não com a Imigração – e nos traz clareza sobre as transformações pelas quais temos passado. Essa edição fala um pouco sobre isso.

Boa leitura!

EDITOR-CHEFE: Alexandre Dias Ramos

REVISOR: Eduardo Castanhos

COLUNISTAS: Alexandre Dias Ramos, Cristiano de Oliveira, Gabriel Melo Viana & Rodrigo Toniol

COLABORADORES DESSA EDIÇÃO: Mariela Torroba Hennigen, Tovar Júnior & V. E. Lilith

ILUSTRADORES: Gerd Altmann, Leonardo Labriola, Valf & Will Leite

FOTÓGRAFOS: Mariela T. Hennigen

AGRADECIMENTOS PARA: Fabiana Del Bianco, Juliana de Paula, Juliana Hack, Nações Unidas Brasil, Organização Internacional para as Migrações, Rafaela Grossi & Thaisa Tylinski Sant'Ana

AGÊNCIAS FONTES E PARCEIROS: IBGE, ONU Brasil, UNIC Rio, United Nations

CONSELHO EDITORIAL: Alexandre Dias Ramos, Gabriel Melo Viana, Jananda Lima, Nilson Peixoto & Rosana Entler

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Edição #96, ano #8, setembrodezembro 2025

ISSN 2560-7855

Nós imigrantes somos o problema?

quantidade e velocidade de imigrantes aceitos em relação às estruturas criadas para recebê-los. Planejamento nunca fez mal a ninguém.

Achar que uma pessoa que imigra, sem falar ainda a língua e sem poder exercer sua profissão, é concorrente de quem já está aqui bem adaptado é bastante injusto e não corresponde à realidade dos fatos. A crise de habitação, derivada de

décadas de políticas e cálculos erráticos, falta de investimento nas estruturas de bem-estar social e pesados lobbies de um punhado de construtoras também não é, convenhamos, culpa dos imigrantes. O filósofo Vladimir Safatle lembra de uma frase de Spinoza, “para quem esconder as verdadeiras causas do povo, submetê-lo a um fluxo de informações distorcidas e esperar que ele decida bem é

Um dos questionamentos mais comuns para quem está lidando com seu processo de imigração é o quanto ele vai demorar. Para aqueles que já estão à espera, a espera pode parecer frustrante e causar ansiedade. Infelizmente, alguns processos de imigração no Canadá podem levar de meses até vários anos.

E por que as decisões demoram? Primeiramente, há um alto volume de pedidos, e isso pode ser afetado por fatores como corte de funcionários, priorização de determinados programas e alterações orçamentárias. Além disso, em alguns processos específicos, pela própria complexidade, a análise leva mais tempo que em outros. Também há a possibilidade

o cúmulo da estupidez”. Ou seja, se estamos imersos num volume enorme de informações contrárias aos imigrantes, mostrando a todo tempo que essa é a causa de todos os males de um país, teremos a tendência a agir contra esses imigrantes – ainda que, por mais absurdo que pareça, sejamos também um deles.

Inúmeras crises sociais e políticas que agravam a pobreza e a injustiça, assim como a perseguição de minorias, produzem instabilidades complexas de serem resolvidas. Em muitos casos, a consequência é a guerra. Segundo dados das Nações Unidas, há cerca de 56 conflitos armados no mundo hoje, que forçam o deslocamento de cerca de 123,2 milhões de pessoas, sendo 42,7 milhões

delas refugiadas. Lembremos que, na época de nossos bisavós e avós, a Primeira e Segunda Guerras Mundiais também foram razões para que muitos imigrassem para o Brasil.

Na maioria dos casos, a família não sai de seu país de origem porque quer; geralmente é por necessidade ou esperança de uma vida melhor. Há outras motivações, claro – como estudos e até mesmo amores avassaladores –, sempre naquela vontade contraditória de construir uma realidade nova em outro lugar, mas, ao mesmo tempo, permanecer em nossa terra natal. Há quem tenha essa escolha, mas muitos outros não.

Alexandre Dias Ramos é editor-chefe do Jornal de Toronto, mestre em Sociologia da Cultura pela Faculdade de Educação da USP, doutor em História, Teoria e Crítica pela UFRGS e pósdoutorando pela Universidade de Lisboa.

O

que fazer quando a decisão da Imigração demora demais

para outro escritório e, acima de tudo, são pessoas diferentes com casos diferentes.

de estar demorando por outro motivo, como checagem de antecedentes ou revisões adicionais de documentos.

É compreensível que a demora gere incerteza emocional e, em alguns casos, até mesmo risco de perder oportunidades ou o status temporário. O que deve ser feito, antes de tudo, é ter uma previsão realista do tempo de processamento da sua aplicação. O próprio IRCC fornece uma ferramenta em seu site que mostra a previsão atualizada de processamento. Esse canal é muito mais confiável que grupos de WhatsApp ou o vizinho do amigo da sua prima que teve um processo semelhante. Processos iguais não significam tempos de processamento iguais, até porque os oficiais que estão decidindo podem ser diferentes, o processo pode ter sido enviado

Com essa previsão realista, você geralmente pode acompanhar seu processo online e verificar regularmente se há algum pedido de documento adicional ou alguma solicitação, como por exemplo biometria ou exame médico. Ignorar pedidos de documentos adicionais pode atrasar ainda mais a decisão. Mas lembre-se: nem todos os processos permitem acompanhamento online, então verifique com seu advogado ou profissional licenciado.

Além disso, mantenha suas informações atualizadas. Se houve mudanças de endereço, telefone, nascimento de filhos ou qualquer alteração relevante, você deve comunicar à Imigração. Não avisar pode gerar atrasos no futuro, em muitos casos.

Contudo, se o seu processo estiver passando do tempo previsto pela Imigração, ou seja, houver uma demora desproporcional, há instrumentos jurídicos que podem ser utilizados. Um deles é o mandamus, que é uma ordem judicial que obriga a autoridade administrativa a tomar uma decisão. Porém, nem todos têm direito a recorrer judicialmente. A demora realmente deve ser desproporcional, já que a Corte Federal irá analisar diversos fatores, incluindo se o tempo total de espera está proporcional ao padrão do programa e o impacto desse atraso na vida do aplicante.

Embora paciência seja extremamente necessária, o direito canadense oferece meios jurídicos para contestar atrasos excessivos.

Problemas com imigração? Negaram seu visto? Recusaram seu processo? Não desista! Podemos lhe ajudar.

gabriel Melo Viana
Gabriel Melo Viana é advogado em Ontário e mestre em Direito pela York University e pela Universidade de São Paulo. Possui MBA em Gestão Empresarial pela FGV e experiência em docência no Ensino Superior.
gerD altmann

Memórias do fi m do mundo

Naquela época, lembraram de desenhar numa parede a expressão do porco morto em sacrifício para a feijoada.

A comida acabou ficando intacta.

Resolveram então enterrar as peças do animal esquartejado como se fossem as partes do corpo de um mártir morto em sacrifício.

Era já o prenúncio, (vários pipocavam) da coisa que se concluiria com a descoberta de um berçário de estrelas em fins do século.2

E as catástrofes que despencaram como quedas d’água sobre o mundo globalizado ninguém fotografou.

Legiões de amigos começaram a lavar o chão com choro do transe estético numa espécie de religião generalizada da alegria.

,

A hora e o dia primeiro de algo maior do que a revolução esquecida.

Nada que ver com a podridão eletiva do juízo final nem com os espasmos históricos das transformações que não foram capazes afinal de produzir a realidade pós-apocapitalística.

Enfim, a Terra tremeu mas nessa altura também a abóbora das comoções estava tão alastrada que é difícil saber quando dá na noite o dia.

Fiquemos, por ora, Com a sequência de imagens:

Do rosto do porco morto desenhado na parede nua no dia da feijoada;

Do berço de estrelas descoberto por um telescópio posterior ao James Webb;

Das lágrimas de alegria de legiões de artistas que começaram a lavar os chãos do mundo com lágrimas de transe estético

depois das catástrofes que despencaram como quedas d’água sobre o mundo globalizado que ninguém mais fotografou.

Ilhanegra, outono de 2984.

1 Ainda se sabe muito pouco sobre a autora em questão. De qualquer modo, resolvemos iniciar a publicação dos textos que nos chegaram em mãos por intermédio de uma conhecida que, desafortunadamente, acabou falecendo em circunstâncias trágicas, no contexto da pandemia, em 2020. Resolvemos publicá-los sem muitas modificações, além daquelas relacionadas à grafia, uma vez que manter as variantes linguísticas do final do século XXX poderia tornar o texto praticamente ilegível para muitos leitores de nosso século. (Nota do editor Tovar Júnior)

2 A autora se refere ao fim do século XXI. (Nota do editor)

leOnarDO laBriOla

Política

Se você achou que eu comecei o texto já fazendo hora com a cara de todo mundo: calma. Não tire conclusões apressadas. Na verdade, nem eu mesmo ainda sei se estou brincando ou falando sério. Só sei que era o começo do ano e eu estava quieto, fazendo planos pra 2025, Ano Novo em BH, aniversário no Dia dos Namorados daqui, debaixo de frio, neve, vento, nevasca, chupacabra, mulher de branco... E daí viria a Páscoa, que geralmente passo com o cunhado em Massachussets e realizo meu rito anual de volta à infância, indo e voltando igual uma besta por baixo daqueles túneis de ovo de Páscoa. Cê lembra daquilo? Aqueles que montavam nas Lojas Americanas, no Brasil? Aquilo na vida de quem gosta de chocolate é espeleologia pura! No escuro da caverna, as estalactites de Sonho de Valsa tamanho 16 contrastam com pinturas rupestres na embalagem do Crocante da Garoto. Há algo amarelo nestas paredes: será ouro? Não, é Caribe tamanho 12, apelidado pelos nativos de “ouro de banana”. Ao fim da expedição, tem Brahma e Bohemia pra vender no liquor store ao lado, e assim o lado criança e o lado adulto se unem pra passar mal juntos, numa comunhão de alegria e azia.

Mas eis que de repente, toma posse como presidente dos EUA essa criatura curiosa, mandando o recado que, convenhamos, todos já ouvíamos veladamente há muitos anos: “quem assume posição de preponderância mundial visando paz e harmonia entre os povos é Dalai Lama. Aqui nós

Saudações, patriotas canadenses

queremos é dinheiro na mão e Nike no pé”. Novidade nenhuma, a América do Sul sempre soube como os EUA operam há muito tempo, basta você abrir o portal do inferno e mandar o porteiro chamar gente como um tal de Henry Kissinger, ou John Dulles, que eles te contam como a coisa funcionava. Continente de política bem mandada é outra coisa, as corporações americanas entraram nele sobre um tapete vermelho de concessões tão boas, mas tão boas, que Erasmo Carlos poderia cantar “amigo de fé, irmão camarada” olhando nos olhos de Roberto, a orquestra lá, “pá pára papara papara”, as lágrimas rolando nas duas faces enternecidas, os dois se abraçam, começa a subir o letreiro, feliz ano novo a toda a nação, paz e luz... e ainda assim: se bem ali, naquele momento, Erasmo pedisse ao irmão Roberto uma concessão daquelas, pode desligar câmera, luz, orquestra, letreiro, buffet e o cabrunco, porque Roberto não dava.

Enquanto nosso calejado continente olha pras tarifas com a mesma surpresa de quem vê o Fábio Júnior casando de novo, no nosso novo continente o banzé se formou com força. Ah, o Canadá, esse vizinho manso, o Ned Flanders do Homer Simpson, povo pacato e – comparado aos vizinhos do sul – educado, que diz ser rival dos EUA mas ama americano de paixão e quer morar lá quando aposentar... Pois além de tomar tarifa na telha, não é que ainda ouviu desaforo? Só as tarifas já bastariam pra bagunçar a vida do pobre canadense, visto que ele nunca se preocupou em diversificar seus mercados e achou que dava pra ganhar

EUA _ Will Tirando

a vida fazendo garage sale pros vizinhos de baixo. Mas havia mais por vir: além das tarifas, o vizinho desaforado ainda falou que há muito tempo vinha fazendo benfeitoria nesse imóvel aqui do norte, e agora queria que passassem a escri-

a piada render... Pronto. Já ficou forçado. Já perdeu a graça. Daí um amigo levanta pra ir ao banheiro, outro vai comprar uma ficha de sinuca, outro pede pra ver a conta, e assim a verdadeira face do filósofo etílico

passassem a escri-

tura pro nome dele. Falou na cara dura que o Canadá realmente é só o mapa e deveria virar um Estado

boné dos EUA no mapa e deveria virar um Estado americano. E pra consagrar a esculhambação, ainda disse que a gente iria gostar. Então a conversa começou séria, com tarifas e renegociações comerciais, e descambou pra falação de bobagem? No universo dos bares, esse comportamento é conhecido: trata-se do cidadão que, envolto em sua deliciosa névoa de cachacidão, solta UMA fala que cativa a atenção de todos. Ao perceber que finalmente deu uma dentro, entretanto, o elemento se empolga e tenta esticar o assunto, acrescentar, fazer

volta a se refletir no vidro escuro da garrafa de Jurubeba Leão do Norte. Seria esse o caso do temível presidente? Falou de tarifa, o povo ficou mudo, daí se empolgou, tomou um gole de Glacial e subiu na mesa pra esticar o assunto, acusar a África do Sul usando foto de Uganda, falar que quer invadir, anexar etc.?

Eu não acredito nisso. Pra mim, foi tudo de caso pensado, utilizando outro negocinho que nós estamos cansados de conhecer: a boa e velha cortina de

mais Ibope do que notícia de economia.

fumaça. Afinal, todo mundo se lembra do “golden shower”, de um presidente comentando vídeos de Carnaval e achando tudo muito indecente... mas ninguém se lembra que, naquele momento, o PIB ficava abaixo da

mé-

crescipaís perguntava o dizer da redução de alíquotas

dia de crescimento e o tava “onde está o Queiroz?”. E o que dizer da redução de alíquotas de importação de armas e todo o bate-boca em torno dele, bem no momento em que o governo era pressionado pelo plano de vacinação que não saía durante a pandemia? Pois é, se os EUA criaram a Doutrina Monroe, nós criamos a Doutrina Doido da Praça 7, que consiste em subir no obelisco da praça pra distrair o povo, enquanto a malandragem passa a mão em tudo que dá pra carregar e correr. E eis aí o resultado: um doidão grita que vai anexar o país, enquanto a malandragem negocia a entrada de bancos americanos no Canadá. Um doidão grita que o Brasil tem que perdoar a turma do golpe de Estado, enquanto a malandragem tá querendo é negociar mercado no país para os seus sistemas de pagamento eletrônico. Afinal, é regra do jornalismo: notícia de treta sempre dá

É bonito perceber que o patriotismo canadense ganhou uma nova roupagem com essa história toda. O boicote a produtos americanos, apesar de já ter arrefecido um pouco, continua vivo. E o boicote turístico continua bastante forte. Já não vemos vaias nos eventos esportivos, o furor já baixou, mas o cerne do movimento ainda segue firme. Arrisco dizer que no Brasil estamos vendo também uma ainda tímida ressureição do “verás que um filho teu não foge à luta”, e tenho fé que nosso povo ainda há de parar de babar americano e abrir os olhos pra assimilação cultural que vivemos, mas infelizmente o nosso senso comunitário ainda costuma entregar a paçoca: abraça a causa, mas se pintar benefício pessoal, é tchau, bênção e um abraço do Paulino – meu sonho é discursar na ONU e encerrar com essa frase, pra todo mundo de BH na plateia começar aquele burburinho “ó que marmota, esse véio deve ser de BH...”, “ai que menino barango”, “nó, esse é fêi demais”. Ia ser lembrado como o dia em que Belo Horizonte parou as Nações Unidas só com o poder do fuxico.

Depois de muitos anos, eu deixei de cruzar a fronteira, outros deixaram de vender pros EUA, outros venderam propriedades que tinham lá, governos buscaram novos parceiros comerciais... são agruras que vão do inconveniente ao assustador, mas agruras ensinam muito: vide Covid, meu caro Euclide. Quem sabe não seriam elas o empurrão que o mundo precisava pra parar de sambar, arrancar a fruteira de Carmen Miranda da cabeça e tacar no imperialismo? Que seja, e que os espetos da coroa do abacaxi acertem primeiro. Adeus, cinco letras que choram.

Cristiano de Oliveira é mineiro, atleticano de passar mal, e um grande cronista do samba e das letras. Formado em Ciência da Computação no Brasil e pósgraduado em Marketing Management no Canadá. É colunista do Jornal de Toronto desde 2017.
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Cotidiano

Há um bairro brasileiro em Toronto?

Thaisa Tylinski Sant’Ana, curitibana, sempre se perguntava se o bairro no qual até recentemente morava era, de fato, uma “Little Brazil”. Rafaela Grossi, porto-alegrense, disse que escolheu se mudar para essa parte de Midtown porque todos os seus amigos brasileiros moram por ali.

“Não consigo sair de casa sem ouvir português”, ela disse. Só no elevador do seu prédio, já conheceu dois vizinhos brasileiros.

Essa percepção de que a área da Yonge St. e Eglinton Ave. está repleta de brasileiros se confirma com grupos de WhatsApp para esta comunidade, alguns com mais de 300 membros. Atualmente, além de ouvir o idioma pelas ruas, plaquinhas de “Little Brazil” podem ser avistadas em

alguns estabelecimentos comerciais.

A ideia das placas surgiu com Fabiana Del Bianco, fundadora da Padaria Toronto e presidente da Midtown Yonge Business Improvement Association. Fabiana chegou no Canadá em 2017 e, em maio de 2020, estabeleceu seu empreendimento próximo da Yonge e Eglinton. Achou esta uma “região interessante” para o público brasileiro crescente e também para poder apresentar seus produtos típicos culinários para não-brasileiros. A ideia de “carimbar” esta pequena parte de Midtown como “Little Brazil” partiu da própria interação com seus clientes. Como moradora, tinha observado a demanda por falantes do português em escolas e demais

comércios da região. “Acabei fazendo a plaquinha do ‘Little Brazil’ porque todo mundo já tinha começado a chamar aqui de ‘o cantinho dos brasileiros’”, Fabiana explicou. Após isso, ela visitou os outros estabelecimentos brasileiros na Eglinton Ave. e ofereceu uma plaquinha personalizada a cada um, com o intuito de criar identidade e comunidade, “não só para a comunidade brasileira, mas pros outros também”. As plaquinhas também foram vendidas amplamente e esgotaram. “[Foi uma iniciativa] pra região entender que tem bastante brasileiro e pra gente se sentir incluída também.”

Mas, afinal, existe realmente um bairro brasileiro? As evidências não são conclusivas. Embora talvez

“Little Brazil” tenha virado um apelido carinhoso para essa zona da cidade, ele é informal. Midtown não é a única região com uma forte influência brasileira recente, a zona da St. Clair Ave. W., por exemplo, também tem vários comércios gastronômicos brasileiros. Após ter conversado também com Juliana de Paula, fundadora do Brazilian

Market, ela mencionou outras cidades com forte presença de brasileiros em Ontário, como Vaughan, Mississauga, Oakville e Burlington, na GTA, e demais núcleos, como Hamilton, Barrie, Innisfil e até Ottawa.

É desafiador identificar com precisão e mapear todas as concentrações de “Little Brazil” por Toronto

e além. “Hoje, tem pequenas comunidades em todos os lugares”, disse Fabiana. De qualquer forma, no caso da Yonge e Eglinton, a iniciativa de Fabiana mostra a consolidação da comunidade brasileira na região, e o quanto desejamos ter nosso “Pequeno Brasil” perto de onde moramos.

Esta matéria surgiu a partir do atual projeto de mestrado da autora na Toronto Metropolitan University. Caso você tenha interesse em contribuir com o projeto de pesquisa, escreva para o email shennigen@torontomu.ca

Mariela Torroba Hennigen é jornalista
A primeira placa de "Little Brazil" foi instalada na fachada da Padaria Toronto, localizada na 5 Manor Rd. E., pertinho do cruzamento da Yonge St. e Eglinton Ave., em Midtown. Instagram @padaria_to

O retrato da religião no Brasil na última década

2010 2022

Em junho deste ano, o IBGE divulgou os números do Censo sobre a religião dos brasileiros. O país reúne uma das mais longas séries históricas do mundo nesse tema, o que nos permite acompanhar, década a década, com poucas interrupções, as transformações nas respostas à pergunta: “Qual é sua religião?”.

À primeira vista, os números surpreendem pouco, reiterando a tendência de gangorra que se consolidou desde a década de 1990.

Nessa gangorra, a regra tem sido clara: enquanto o número de evangélicos cresce, o de católicos diminui. No entanto, uma análise mais atenta do Censo de 2022 mostra um cenário mais complexo. Ao contrário da expectativa amplamente difundida pela imprensa ao longo da última década, a intensidade do crescimento evangélico foi muito abaixo do previsto, apontando para uma desaceleração significativa dessa expansão populacional.

Segundo o IBGE, 26,9% da população brasileira se declara evangélica; havia a expectativa de que esse percentual alcançasse, no mínimo, 30%.

A explicação para essa diferença envolve uma lição estatística: à medida que a base populacional evangélica se amplia, manter os mesmos índices percentuais de crescimento se

torna mais difícil. Crescer de 5% para 15% é mais simples do que avançar de 25% para 35%. A dinâmica populacional impõe, assim, um freio natural ao crescimento. Isso não significa necessariamente estagnação, mas pode indicar a maturação de um ciclo de consolidação da base evangélica nacional.

Do outro lado da gangorra, há uma constante que atravessa 150 anos de perguntas censitárias sobre religião: o percentual de católicos diminui. Em 1872, eram 99,7% da população; cinquenta anos depois, 95%. Na década de 1960, haviam recuado a 90%; em 1980, à casa dos 80%. Hoje, segundo o último Censo, representam 56,7%. Ou seja, desde que o Brasil passou a medir sua demografia religiosa, começou também a deixar de ser católico.

Os dados recém-divulgados pelo IBGE, contudo, mostraram uma redução menos intensa da fatia católica. Especulava-se uma queda igual ou superior a 10 pontos percentuais na última década, mas o que se observou foi uma diminuição de 8,3 pontos entre 2010 e 2022. Se acompanharmos a sequência histórica de 1991 a 2022, o Censo revela uma desaceleração na taxa anual de queda entre católicos. Passamos de uma redução média de 1,33% ao ano nos

anos 1990 para 1,25% na década de 2000 e 1,17% na última década. O catolicismo segue perdendo fiéis, mas a velocidade da erosão diminui de forma lenta e contínua.

Há o risco, porém, de olharmos apenas para essa gangorra entre católicos e evangélicos e deixarmos de perceber uma transformação estrutural mais ampla da paisagem religiosa brasileira. O país segue majoritariamente cristão, mas sua base demográfica vem encolhendo de maneira consistente. Em apenas quatro décadas, o percentual de cristãos na população caiu cerca de 12,5%.

Católicos

religião. Nenhum outro segmento cresceu tanto no Brasil nas últimas décadas. Entre 1980 e 2022, sua participação na população saltou de 1,8% para 9,3% – um aumento de mais de cinco vezes. A tendência ascendente vem desde os anos 1970, quando menos de 1% se declarava sem religião. Desde então, o crescimento foi contínuo: 7% em 2000, 7,9% em 2010 e 9,3% em 2022.

Ou seja, embora a dinâmica entre católicos e evangélicos redesenhe o mapa religioso nacional, o cristianismo como um todo está em retração.

Parte da explicação para esse quadro está no grupo dos que se declaram sem

Os sem religião não necessariamente não acreditam em Deus, mas expressam duas recusas: à autoridade das instituições religiosas e aos mediadores tradicionais do sagrado – sacerdotes, pastores, pais de santo. Preferem percursos espirituais que dispensam essas instâncias de legitimação. Em síntese, creem sem pertencer. O retrato da próxima década, portanto, talvez não seja apenas a disputa entre católicos e evangélicos, mas a ascensão constante dos que se dizem sem religião.

Evangélicos Sem religião 1,8%

1% Umbanda e Candomblé

Importante notar que o número de adeptos da Umbanda e do Candomblé mais do que triplicou.

2,7% Outras religiosidades 4%

Rodrigo Toniol é antropólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É membro da Academia Brasileira de Ciências e escreve para a Folha de São Paulo. Recentemente, foi professor visitante na Universidade de Leipzig, na Alemanha.

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