Onde a vida faz a curva

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Diário da Manhã

OPINIÃOPÚBLICA

GOIÂNIA, SEGUNDA-FEIRA, 28 DE NOVEMBRO DE 2011

OPINIÃOPÚBLICA opiniao@dm.com.br (62) 3267 1147

Editora: Sabrina Ritiely

ONDE A VIDA FAZ A CURVA Batista Custódio Editor-geral do

Diário da Manhã

G

OSTO de escrever como o pássaro de voar. Ausente dos artigos, estou condor na gaiola. Sou na companhia dos leitores o irmão na casa da família. Não vivo dinheiro. Existo sonhos. Não meço dificuldades. Estendo otimismo. Vou para as lutas como quem sai para receber a vida. Viajo nos horizontes a esperança nascendo. Visto o branco do noivado das alvoradas beijando os dias. Tinjo o olhar no poema dos crepúsculos bordando as noites. Ouço a canção dos ermos no namoro das estrelas. O mundo busca-me no coração. E vejo o eterno do perfume no breve das flores. Ando o tempo todo dentro da cabeça para estar sempre onde irão chegar as gerações seguintes e ir-me atualizado na evolução do conhecimento. A pessoa que ficar parada na calçada de uma esquina não conhecerá a sua cidade. Também todo aquele que permanecer paralisado na atividade exercida e não se movimentar na inteligência não descobrirá a sua vocação, que é o dom da utilidade realizadora inata em Ludwing van Beethoven, a música; em Albert Einstein, física e a química; em William Shakespeare, a literatura; em Mohandas Karamchand Gandhi, a paz; em Odilon Santos, de Araguari, o transporte coletivo, e em José Pereira Cardoso, de Ponte do Norte, a quitanda. Esses dois mineiros fizeram de si o sucesso em Goiás. Porque trabalharam com o material da sua vocação. A sede no ideal de transcender-me ao que estou na imprensa, para cum-

Einstein

prir o que sou na vocação do jornalismo, esmagame de angústia no conviver com jornalistas desabitados de caráter. Estar frequente na labuta diária das edições no jornal, e não estar presente na autoria dos editoriais submetem-me àquele jejum de um diabético produzindo pudim, manjar, rosca, brevidade nas doçarias para outros se deliciarem. Nunca escrevi tantos artigos como neste ano. Estão às dezenas no prelo da gaveta em minha biblioteca. Vários passam de 50 laudas. Serão editados quando me vier no tempo o momento propício de ser rodada a chave que fecha o percurso das armadilhas e abre o roteiro sem as trapaças contra a estabilidade do jornal. O fato de haver parado de publicar meus artigos é o ato de abstinência a que me obriguei como única condição de manter o Diário da Manhã, com a liberdade aberta para a sociedade opinar, e sem despertar a conjunção do autoritarismo no corredor polonês dos corruptos, que se montou na

Gandhi

Shakespeare

política, fora e dentro do poder em Goiás. O trabalho estafante tem sido-me a receita na serviceira para reerguer o jornal, tão despedaçado, como se ali estivera uma facção de desordeiros missionários endemoniados para reduzir aos cacos o meu sonho, enquanto eu estava ausente e escrevendo o livro SagaSonho. Jazia em tudo a comoção de vida se apagando com desesperante súplica de salvação. Todas as dores que me ficaram caladas das golpeadas recebidas, anos a fio, para não deixar o Cinco de Março e o Diário da Manhã caídos, estavam ali sangrando-me nos sentimentos. Flagelava-me aos olhos a realidade que eu não queria ver. A pilhagem amoitada na inoperância administrativa. O saqueamento escondido na penúria financeira. O esbulho encoberto no deszelo das máquinas. A decomposição moral ocultada no lixoso dos cômodos. O conluio dos aproveitadores na cedição destilada no desestímulo dos funcionários. A

Beethoven

CONTINUA

infiltração macia de tendências cavilosas conjurando manchosamente no invólucro da amizade contra a ética histórica da minha resistência no jornalismo livre das tendenciosidades em proveito próprio. Reassumi em janeiro o comando do Diário da Manhã na tapera das esperanças. Tudo era acabado nos ânimos esmorecidos. Rosto a rosto as incertezas desenhavam nos semblantes o aguardo do momento final no não há mais. A luz que resplandecera na calva do peito raiava o fogo do interno na chaga das gotas. Os olhos segurando choro, a saúde matando as doenças, o esforço vencendo os cansaços no corpo dobrado na carga dos 76 anos, a alma sofria na cisão das amizades idas na gratidão não lembrada por pessoas esquecidas das derrotas revertidas em vitórias. Olhei, um velho conhecido me esperava: o chão, e nele os meus rastros, com o cavado dos calcanhares nas descidas e com a marca dos dedos nas subidas; era só pisar

Odilon Santos

decidido nas adversidades e firmar a cabeça nas ideias criativas, que daria no tropeção das quedas o salto para o triunfo. Já fui empurrado por trás a esse chão. Ele é duro. Mas é o único lugar consistente para se pisar com firmeza e subir quantas vezes cair. É onde a vida faz a curva: os fracos se apequenam e os fortes se agigantam. Vai-se à forja no baque das mudanças no doloroso. Sumi no mundo e revi a solidão das apreensões desoladoras no íntimo e não compartilhada sequer pelo alívio das solidariedades externadas. A vida leva-nos e traznos sozinhos na gente às horas da morte. Às vezes sentimos ser menos temeroso o instante de morrer que perigoso o momento a viver. O temerário observa-nos de todos os olhos nessas horas sem a alternativa da pendência. Singrei travessias nas tormentas de golfos transbordados nas virações de tufões que me deixavam confuso se o que via era delírio no azul dos céus se mexendo ou se era realidade o azul se movendo nas ondas. Talvez fosse apenas a enchente dos dias de dois tempos afogando-me na mente – antes represados nas marés montantes das águas contrárias que passaram na proa e depois arrombadas nas calmarias das águas que se esvaziaram na popa. Velejei à deriva nos trapos da decepção pelo caudal dos ingratos e não desestendi o manto do perdão na correnteza das traições. Suei dores. Escrevi orações no sentimento. Respirei fadigas. Busquei ar na compressão das asfixias. Comi remédios. Sobrevivi a centavos. Economizei até raivas ultrapassadas da tolerância humana. Jogado às baixezas que desnivelam os caráteres

J. Pereira

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