Minuta

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O Senhor Ministro Edson Fachin: Acolho o bem lançado relatório proferido pelo e. Ministro Roberto Barroso.

Saúdo as sustentações orais trazidas pelos i. Advogados que muito contribuíram para o pleno esclarecimento da controvérsia.

No mérito, peço vênia ao e. Min. Relator, para adotar posicionamento divergente, a fim de reconhecer a inconstitucionalidade do inciso I do art. 19, no que prevê um requisito etário para a aposentadoria especial, do §2º do art. 25, que proibiu a conversão do tempo especial em comum, e do inciso IV do § 2º do artigo 26, que abrange a forma de cálculo do benefício especial, todos da Emenda Constitucional n.º 103, de 12 de novembro de 2019.

Esses dispositivos cuidam, respectivamente, da aposentadoria especial por insalubridade, da vedação da conversão do tempo especial em tempo comum e da redução do valor da aposentadoria especial.

O e. Ministro Relator bem apontou as divergências que as normas de direito previdenciário geram e defendeu, também de forma correta, a necessária deferência que o Poder Judiciário deve observar em casos como esse. Além disso, reconheceu como legítimo o objetivo geral da Reforma da Previdência, que foi de assegurar um equilíbrio atuarial em um cenário no qual o percentual da população idosa aumenta significativamente.

Em relação ao estabelecimento de uma idade mínima para a aposentadoria especial, o Relator acolheu, em seu voto, a manifestação trazida pelo Ministério da Economia, para quem:

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(i) “a idade média de aposentadoria dos segurados que requerem o benefício de aposentadoria especial por agentes nocivos é de 49,2 anos”;

(ii) “em 2018 a idade [média] do segurado do sexo masculino na data de concessão do [benefício] de aposentadoria especial era de 51,11 anos e (...) a idade média de óbito do segurado homem em gozo da aposentadoria especial foi de 79,76 anos”;

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(iii) “[e]mbora exista uma crença de que o segurado que exerce atividades com exposição a agentes nocivos tem uma vida mais curta, os dados de benefícios nos mostram (...) que a idade média no óbito desses segurados foi respectivamente de 79,19 e 79,05 (...)”; e

(iv) “[e]nquanto a duração média de uma aposentadoria por tempo de contribuição de um segurado do sexo masculino considerando o ano de óbito foi de 21,19 anos e de uma aposentadoria por idade foi de 12,84 anos, para o beneficiário da aposentadoria especial foi de 28,64 anos”.

Assim, porque a fixação de uma idade mínima seria uma forma de corrigir esses desequilíbrios, o Relator rejeitou a alegação de inconstitucionalidade.

Quanto à possibilidade de conversão do tempo especial em comum, assentou o Relator que a medida era uma opção legislativa legítima, o que deveria ser respeitado pelo Poder Judiciário.

Já no que tange ao cálculo do benefício, não haveria inconstitucionalidade, porque as regras são as mesmas, com a única exceção mais benéfica aos trabalhadores expostos a agentes nocivos à saúde:

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“49. Quanto à forma de cálculo dos proventos de aposentadoria especial (EC nº 103/2019, art. 26, § 2º, IV), a requerente aduz violação aos arts. 194, II, IV, V e VI, e 195, § 4º, da Constituição. Explica que o trabalhador sujeito a agentes nocivos, apesar de recolher montante superior de contribuição previdenciária, receberá valor menor de proventos que o segurado que labora em condições normais. O argumento, todavia, não é procedente.

50. A regra para cálculo dos proventos, seja para a aposentadoria voluntária, seja para a aposentadoria especial, está prevista no art. 26 da Emenda nº 103/2019[35], segundo o qual a base de cálculo dos proventos de aposentadoria corresponderá à média aritmética de 100% (cem por cento) dos salários de contribuição, desde julho de 1994 ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência. Tal média ficará limitada ao teto dos benefícios do regime geral de previdência social. Poderão, no entanto, ser excluídas da média as bases de contribuição que resultem em redução do valor do benefício, desde que mantido o tempo mínimo de contribuição exigido, sendo vedada a utilização do período excluído para qualquer finalidade[36].

51. Quanto ao percentual que deverá incidir sobre essa base de cálculo, o § 2º do art. 26 da emenda estabelece que será de 60%

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(sessenta por cento) para quem tiver completado 20 (vinte) anos de contribuição. A partir daí, para cada ano excedente, são acrescidos 2 (dois) pontos percentuais. É dizer: para fazer jus a proventos integrais (100%), o segurado deverá ter ao menos 40 (quarenta) anos de contribuição. As exceções a isso são as seguintes: (i) a segurada mulher terá direito a 100% (cem por cento) da média aos 35 (trinta e cinco) anos de contribuição; (ii) na aposentadoria especial por atividade insalubre cujo tempo mínimo de exposição é de 15 (quinze) anos, o segurado também fará jus a 100% (cem por cento) da média aos 35 (trinta e cinco) anos de contribuição[37]; e (iii) na aposentadoria por incapacidade permanente decorrente de acidente de trabalho, doença profissional e doença do trabalho, os proventos equivalerão a 100% (cem por cento) da média aritmética, independentemente do tempo contribuído[38].

52. Se as regras de cálculo são as mesmas tanto para a aposentadoria voluntária como para a aposentadoria especial por insalubridade – com uma única exceção mais benéfica aos trabalhadores expostos a agentes nocivos à saúde –, não é verdadeira a afirmação da requerente de que esses trabalhadores, apesar de recolherem montante superior de contribuição previdenciária, receberão valor menor de proventos que os segurados que laboram em condições normais. Em realidade, os proventos, quando o tempo de contribuição for o mesmo, serão idênticos nas hipóteses do art. 19, § 1º, I, b e c , da EC nº 103/2019 (atividade especial de 20 ou 25 anos de contribuição) e mais elevados na hipótese do art. 19, § 1º, I, a , da emenda, isto é, para os segurados sujeitos a condições mais gravosas de trabalho (atividade especial de 15 anos).”

Renovando o pedido de vênia, tenho que a ação deve ser julgada procedente.

É verdade que o espaço para o controle de constitucionalidade é bastante reduzido, segundo expressamente prevê o art. 60, § 4º, da CRFB. É ainda mais reduzido o espaço de intervenção do Poder Judiciário quando o próprio parâmetro invocado, o direito à seguridade social, é ele mesmo objeto de alteração.

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Em casos como esse, que tratam da reforma de toda um programa normativo da Constituição, o papel do Poder Judiciário deve ser o de assegurar que todas as dimensões desse direito sejam preservadas, ainda que reconfiguradas, e que o Estado não se exima de atender às obrigações que assumiu. Se, de um lado, o Supremo Tribunal Federal reconhece que não há direito adquirido a um regime jurídico, de outro não é possível

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admitir que riscos protegidos pelo sistema de previdência fiquem simplesmente sem proteção.

No presente caso, não obstante o legítimo interesse do Estado em preservar a viabilidade financeira da previdência social, a sua intervenção acabou por desconfigurar a dimensão securitária do instituto da aposentadoria especial.

O direito fundamental à seguridade social deve ser entendido nos termos do Comentário Geral n. 19 (E/C.12/GC/19): é o direito ao acesso e à manutenção de benefícios sem discriminação como forma de garantir a proteção, entre outros, contra a falta de remuneração relacionada ao trabalho e causada por doença, deficiência, maternidade, acidente de trabalho, desemprego, idade avançada, ou morte de um familiar; contra o acesso à saúde pública; contra a insuficiência de apoio familiar, particularmente para as crianças e para os adultos dependentes.

Ainda de acordo com esse mesmo documento – o qual, como tenho frisado em diversas manifestações, deve ser lido como tendo o mesmo valor que os direitos contidos na própria Constituição –, é obrigação do Estado estabelecer uma idade de aposentação que leve em conta os riscos de trabalhos insalubres e também a capacidade de trabalho das pessoas mais velhas.

O seguro social não visa apenas proteger a pessoa em idade avançada, mas também garantir que ela tenha condições de trabalhar e obter renda. É um grande equívoco confundir os gastos que o Estado tem com a aposentadoria – e que, obviamente, precisarão ser revistos dada a mudança no perfil etário da população – com os gastos necessários para garantir e manter a capacidade produtiva das pessoas. No Brasil, boa parte das medidas de seguro social são feitas pela Previdência Social, o que acaba por ampliar a confusão. Por isso, é preciso ser muito cuidadoso para não se permitir que, em nome das necessidades de uma reforma da previdência, sejam retiradas proteções do seguro social.

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Muito embora a Reforma da Previdência tenha mantido o instituto da aposentadoria por tempo especial, o que, à primeira vista, poderia sugerir um alinhamento com o parâmetro constitucional, os dados trazidos pelo Ministério da Economia exigem que o escrutínio judicial seja feito de forma rigorosa.

É que o fato de as pessoas que conseguiram o benefício terem a mesma expectativa de vida dos demais aposentados não indica, necessariamente,

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um desvirtuamento do instituto. Ao contrário, pode ele muito bem indicar que a política pública foi bem sucedida. O objetivo, afinal, era justamente esse.

Além disso, é preciso observar que no universo de aposentados, o percentual daqueles que obtiveram o regime especial é bastante reduzido, ao menos do que se tem em comparação com alguns países (não chegando a 10% deles, segundo um Estudo feito pela Comissão Europeia, intitulado “ RetirementregimesforworkersinarduousorhazardousjobsinEurope”).

Por fim, é preciso ter em conta que os prazos de carência para os trabalhadores em condições insalubres de trabalho podem não ter serventia nenhuma, porque quanto mais exigente for o trabalho, mais cedo as pessoas tendem a se aposentar, comprometendo a sua renda no futuro (Stengard, J. Et al. The Implication of Physically Demanding and Hazardous Work on Retirement Timing. International Journal of Environmental Resarch and Public Health. 2022 Jul.). Para aumentar ainda mais o problema, são justamente os trabalhadores com os menores salários que tendem a se aposentar antes (Lopez, Italo Garcia, Kathleen J. Mullen, and Jeffrey Wenger. 2022. “The Role of Physical, Cognitive and Interpersonal Occupational Requirements and Working Conditions on Disability and Retirement.” Ann Arbor, MI. University of Michigan Retirement and Disability Research Center (MRDRC) Working Paper; MRDRC WP 2022448).

Esses dados indicam que a aposentadoria por tempo especial tem função dúplice: ela serve para proteger as pessoas em idade avançada, mas ela serve também para proteger a capacidade laboral de quem já não mais consegue trabalhar, apesar de não ter deficiência.

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Por isso, sempre que o Estado instituir ou aumentar a idade para o acesso à aposentadoria especial, deve ele assegurar que as pessoas que estão em profissões com risco à saúde possam de fato e com dignidade trabalhar por mais tempo , ou se isso não for possível, que eles possam ter uma renda assegurada. A ideia é que o Estado promova políticas sociais que permitam a recolocação desses trabalhadores. Essa conclusão, que decorre da própria dogmática do direito à seguridade social foi também a que chegou a Comissão Europeia noWhitePaperonPensionsde 2012.

Noutras palavras, se não é possível falar que a simples instituição de uma idade mínima para a aposentadoria especial, por si só, viola o direito à seguridade social, haverá ofensa à Constituição (e ao núcleo essencial desse

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direito fundamental) sempre que a instituição de idade estiver dissociada de medidas que promovam a extensão com dignidade da capacidade laboral.

Lamentavelmente foi o que aconteceu neste caso.

Para além da instituição da idade mínima, a Reforma da Previdência vedou a contagem diferenciada de tempo de contribuição. Se é certo, como já tive oportunidade de assinalar no julgamento do RE 1.014.286, que a partir da Emenda há uma faculdade para os demais entes da federação instituírem, em seus regimes próprios, critérios para a contagem diferenciada, ela passa a ser necessária quando há uma idade mínima para a concessão da aposentadoria.

É que a exposição a agentes nocivos diminui consideravelmente a capacidade laboral. Segundo o estudo recente “ The Role of Physical, Cognitive, and Interpersonal Occupational Requirements and Working ConditionsonDisabilityandRetirement ”, já indicado neste voto, há um efeito cumulativo das tarefas mais exigentes na saúde do trabalhador.

Além disso, se o objetivo – correto – da Reforma é estender o período laboral, a vedação da conversão do tempo especial em comum desincentiva os trabalhadores expostos a condições mais graves a buscarem uma alternativa mais salubre. Como já se indicou nesta manifestação, é preciso dar meios para que os trabalhadores que estão nessas condições busquem alternativas de renda sem desconsiderar os efeitos cumulativos do período especial.

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Da mesma forma, o cálculo do benefício da aposentadoria especial, sobretudo se considerada a proibição da conversão do tempo especial em comum, além de desincentivar a opção pelos trabalhadores de ocupações que sejam menos arriscadas, põe em condições iguais quem está em posições jurídicas diferentes. Note-se que o trabalhador em condições especiais de 20 ou 25 anos de contribuição, apesar de estar em condições prejudiciais à saúde, terá que trabalhar pelo mesmo período que os demais trabalhadores para ter a mesma renda.

Como apontam as pesquisas sobre as condições laborais, é evidente que esse trabalhador não conseguirá permanecer por todo esse tempo no mercado de trabalho. Irá aposentar-se mais cedo, com renda menor, comprometendo seu futuro.

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Com todas as vênias ao e. Ministro Relator, não vejo como essa alteração possa ser compatível com o direito à igualdade e à seguridade social.

Sem prejuízo de voltar a apreciar este tema, quando da devolução do pedido de vista feito pelo e. Min. Ricardo Lewandowski, e almejando que essas considerações possam modestamente contribuir para o voto que Sua Excelência trará, divirjo do e. Ministro Relator, para julgar procedente a presente ação direta, declarando a inconstitucionalidade do inciso I do art. 19; do §2º do art. 25; e do inciso IV do § 2º do artigo 26, todos da Emenda Constitucional n.º 103, de 12 de novembro de 2019.

É como voto.

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