Revista Velhas nº22 - setembro de 2025

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Uma publicação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas

Entre dados e devaneios: o futuro das águas em jogo

Atravessamos uma era marcada por paradoxos. De um lado, a Inteligência Artificial se consolida como símbolo máximo da chamada Quarta Revolução Industrial, prometendo soluções inovadoras para antigos dilemas ambientais. De outro, o avanço tecnológico traz consigo uma sede insaciável por energia, dados e recursos naturais. É o dilema da inovação: curar ou consumir ainda mais o planeta? Nesta edição da Revista Velhas, mergulhamos nesse debate crucial — e cada vez mais urgente — sobre como aliar tecnologia e sustentabilidade sem repetir erros do passado.

Ao mesmo tempo, é nas escolas rurais, nos centros comunitários e nas margens dos rios que uma outra revolução se desenha — menos digital, mais sensível. Crianças, jovens e comunidades despertam, por meio da Educação Ambiental, para a importância de cuidar da terra, das águas e de si mesmos. Contamos aqui as histórias de quem transforma o território não com algoritmos, mas com afeto e ação local. A Educação Ambiental, como você verá, é tanto semente quanto ferramenta de mudança.

Na contramão desse movimento de escuta e cuidado, o cenário político nacional acena com flexibilizações perigosas. A nova legislação de licenciamento ambiental — já sancionada, ainda que com vetos — põe em xeque décadas de lutas por uma governança responsável dos recursos naturais. Em Minas Gerais, a dispensa de licenciamento para propriedades rurais de até mil hectares acende um alerta: até onde iremos em nome do desenvolvimento econômico?

A entrevista desta edição é com o climatologista Carlos Nobre, referência mundial em mudanças climáticas. Com a sobriedade de quem estuda o colapso ambiental há décadas, ele nos adverte: muitos dos biomas brasileiros estão perigosamente próximos de seus pontos de não retorno. Em suas palavras, salvar o Rio das Velhas é também salvar parte da esperança que ainda resta ao país.

Mas a esperança assume outras formas. Às vezes, ela vem pelo resgate da história — como no caso da Expedição Langsdorff, que, há mais de 200 anos, percorreu o Vale do Taquaraçu, revelando ao mundo a riqueza da biodiversidade mineira. Outras vezes, ela surge no pedal, na canoa ou na corrida: esportistas e amantes da natureza redescobrem o Rio das Velhas em um trajeto de 65 km entre Ouro Preto e Acuruí, mostrando que lazer e preservação podem andar juntos.

Falando em redescobertas, visitamos Cachoeira do Campo, onde a jabuticaba é mais do que fruto — é identidade, economia e cultura viva. A Festa da Jabuticaba, já tradicional na região, celebra uma cadeia produtiva que une sabor, afeto e desenvolvimento sustentável.

O território em destaque nesta edição é a UTE Rio Bicudo, no Baixo Velhas. Terra de contrastes, é também um espelho da realidade que se impõe: história literária e tradições se entrelaçam com desafios como a escassez hídrica e as pressões sobre os recursos naturais. Entre a poesia e a urgência, a pergunta permanece: como garantir o amanhã sem trair o ontem?

Expediente

Revista Velhas

Publicação Semestral do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas Nº 22 - Setembro 2025

CBH Rio das Velhas

Diretoria

Presidenta: Poliana Valgas (Prefeitura Municipal de Jequitibá)

Vice-Presidente: Ronald de Carvalho Guerra (Associação Quadrilátero das Águas- AQUA)

Secretário: Renato Júnio Constâncio (Cemig)

Secretária-Adjunta: Heloísa França (SAAE Itabirito)

Agência Peixe Vivo

Diretora-Geral: Rúbia Mansur

Gerente de Integração Interina: Ohany Vasconcelos Ferreira

Gerente de Projetos: Jacqueline Fonseca

Gerente de Administração e Finanças: Berenice Coutinho

Esta revista é um produto do Programa de Comunicação do CBH Rio das Velhas.

Produzida pela Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social

Direção: Paulo Vilela, Pedro Vilela e Rodrigo de Angelis

Coordenação de Jornalismo: Luiz Ribeiro

Edição: Luiz Ribeiro e Rodrigo de Angelis

Redação e Reportagem: Arthur de Viveiros, João Alves, Luciana Machado, Luiz Ribeiro, Luiza Baggio, Mariana Martins e Paulo Barcala.

Revisão: Isis Pinto

Fotografia: Ane Souza, Bianca Aun, Bernardo Mascarenhas, Cristiano Costa, Cristiano Machado/Imprensa Minas, Fernando Donasi/MMA, Fernando Piancastelli, João Alves, José Cruz/Agência Brasil, Leo Boi, Lucas Nishimoto, Lula Marques/Agência Brasil, Marcelo Adre/Projeto Manuelzão, Marcos Oliveira/Agência Senado, Michelle Parron, Miguel Aun, Ohana Padilha, Pressmidia e Pri Costari/Agência Brasil

Ilustrações: Clermont Cintra e Albino Papa

Projeto Gráfico: Márcio Barbalho

Design Gráfico e Diagramação: Albino Papa

Impressão: EGL Editores

Tiragem: 3.000 unidades.

Direitos reservados. Permitido o uso das informações desde que citada a fonte.

Com a palavra p. 6

O despertar para a Educação Ambiental p. 12

16

Licenciamento Ambiental a passos largos

O Expedicionário e o Vale do Taquaraçu

p. 24

Entrevista: Carlos Nobre, cientista e climatologista

30

Economia Regional: a cadeia produtiva da jabuticaba

p. 36

Unidades Territoriais: Rio Bicudo

65 km de Natureza e Esporte no Alto Velhas p. 46

Cuidar da água é cuidar do futuro

João Alves

Chegamos ao último capítulo de uma caminhada que, desde 2020, percorre os caminhos e descaminhos da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. Este editorial marca não apenas o encerramento do meu ciclo como presidenta deste Comitê, mas também um momento de celebração, de balanço e, sobretudo, de renovação da esperança.

Nestes cinco anos, enfrentamos enormes desafios, mas também vivenciamos conquistas significativas, que consolidam o Comitê como referência nacional na gestão participativa e descentralizada das águas.

A travessia não foi simples. Em meio a crises hídricas, a eventos extremos e à urgência da emergência climática, o CBH Rio das Velhas se manteve firme, ativo e propositivo. Ainda em 2020, em plena pandemia, mantivemos os trabalhos de forma virtual, garantindo a continuidade das ações. Desde então, temos aprofundado o diálogo com o poder público, técnicos, usuários e a sociedade em geral, ampliando o entendimento de que cuidar da água é, acima de tudo, cuidar da vida.

Nosso foco estratégico tem sido orientado por três eixos: produção de água, saneamento e fortalecimento institucional. E foi por meio da Cobrança pelo Uso da Água, principal instrumento de financiamento das ações do Comitê, que conseguimos transformar planejamento em prática. Desde a aprovação da nova metodologia em 2023, o CBH passou a ter ainda mais condições de financiar programas e projetos estruturantes, sem onerar o usuário pagador.

Um dos maiores marcos dessa gestão foi o avanço do Programa de Conservação Ambiental e Produção de Água, que saiu do papel, ganhou corpo e está em plena execução em quatro microbacias da bacia. Implantamos com sucesso, numa grande rede de parceiros, o Programa de Pagamento por Serviços Ambientais em Itabirito, promovendo a valorização dos produtores rurais que preservam e protegem os mananciais, reconhecendo os benefícios ecossistêmicos gerados por suas práticas.

O saneamento rural e urbano teve atenção especial. A união de esforços com o Comitê da Bacia do Rio São Francisco garantiu investimentos robustos em projetos de esgotamento sanitário em diversos municípios. O lançamento do PMI (Procedimento de Manifestação de Interesse) para elaboração de projetos executivos de saneamento amplia essa frente e abre caminhos para que mais localidades possam ter acesso a sistemas coletivos e adequados.

A dimensão educadora do Comitê também foi valorizada. Elaboramos e aprovamos o nosso Plano de Educação Ambiental (PEA), que já começou a ser implantado, a fim de fortalecer o conhecimento e o engajamento da população para uma convivência mais harmoniosa com os recursos naturais. Paralelamente, estruturamos o Plano de Formação de Conselheiros, reforçando o compromisso com o fortalecimento institucional e a qualificação das nossas instâncias deliberativas.

Outro feito de grande relevância foi a condução do processo de reenquadramento dos corpos d’água da bacia, iniciado ainda em 2023 e agora em fase final. Trata-se de um dos principais instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, o qual, com ampla participação, tem sido construído para refletir as reais necessidades e vocações dos nossos territórios.

Não menos importante foi a criação de novos Subcomitês, como os de Peixe-Bravo e Ribeirões Tabocas e Onça, ampliando a capilaridade do Comitê e garantindo que cada porção da bacia tenha voz e representação.

Agora, com o processo eleitoral em curso e a eleição da nova Diretoria do CBH Rio das Velhas se aproximando, o que fica é o sentimento de dever cumprido. Mais do que isso: fica a certeza de que o Comitê sai fortalecido, ainda mais maduro e plural, resultado de um processo democrático e participativo, que renova a cada ciclo a legitimidade e a representatividade desta instância tão essencial à vida.

Agradeço a cada conselheiro e conselheira, à Agência Peixe Vivo, às Câmaras Técnicas, aos Subcomitês, meus colegas de Diretoria, prestadores de serviço e parceiros institucionais que, com coragem e compromisso, ajudaram a escrever esta história.

Que a próxima gestão siga firme na missão de cuidar do Velhas com sabedoria, sensibilidade e ação. Afinal, mais do que nunca, é tempo de pensar no coletivo, agir com responsabilidade e continuar protegendo o bem mais precioso que temos: a água.

Com gratidão e esperança,

Poliana Valgas

Presidenta do CBH Rio das Velhas

Inteligência Artificial e meio ambiente: a revolução digital tem uma boca voraz

Tecnologia que é a alma da Revolução Industrial 4.0 traz inúmeras possibilidades para ajudar a curar nosso planeta adoecido — mas também tem seu lado sombrio: um monstro que devora recursos naturais

Texto: Paulo Barcala

Por trás de cada interação com um chatbot [programa de computador que simula e processa conversas humanas, permitindo que as pessoas interajam com dispositivos digitais], uma boca voraz deixa as marcas da mordida hídrica e energética.

Gerar um texto de meras 100 palavras a partir de Inteligência Artificial (IA) no ChatGPT [chatbot desenvolvido pela OpenAI] consome, em média, 519 mililitros de água, conforme divulgado pelo jornal The Washington Post a partir de análise de pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Riverside.

Para gerar imagens no estilo Ghibli [estúdio japonês de animação], febre que contagiou grande parte da Internet há pouco tempo, a IA consome ainda mais água, pois a geração de uma imagem equivale a 20 comandos. Treinar um único modelo de Inteligência Artificial Generativa, que gera algo novo e original, muitas vezes imitando a criatividade humana, e produz novos conteúdos como textos, imagens, áudios, vídeos e até códigos de software, como o GPT-4, consome uma quantidade de água equivalente ao gasto anual de 300 residências.

Relatório do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) deste ano destaca que a demanda global por água relacionada à IA tende a aumentar significativamente, atingindo volumes que superam o uso anual de alguns países, por exemplo, o Reino Unido. Vivendo uma realidade em que 25% da população da Terra enfrenta escassez de água potável, essa crescente avidez é motivo de grande preocupação.

A própria produção dos microchips que turbinam a IA Generativa também demanda grandes quantidades de água, intensificando o impacto ambiental dessa tecnologia.

A maior empresa fabricante de semicondutores do mundo, a TSMC, sediada em Taiwan, consome milhões de litros de água ultrapura (UPW, na sigla em inglês) para lavar as pastilhas de silício e resfriar equipamentos, segundo seu próprio Relatório de Sustentabilidade de 2023.

Para produzir um microchip são necessários cerca de 2.200 galões de UPW, e treinar um grande modelo de linguagem pode consumir milhões de litros de água doce.

Faces do problema

Em 2020, durante a construção de mais dois data centers do Google na cidade de The Dalles, no estado norte-americano do Oregon, a população teve acesso a informações que revelavam um gasto de água superior a 1/4 do total consumido por toda a população local. Isso ocorre porque os servidores dos data centers geram enormes quantidades de calor à medida que efetuam os milhares de cálculos necessários para cada resposta. Para evitar o sobreaquecimento, o sistema requer arrefecimento constante.

Diante desses conflitos, o gigante Google comprometeu-se a repor 120% da água que utiliza nesses processos até 2030, mas relatório recente mostra que a big tech só havia reposto 18% até 2023.

Outro desafio diz respeito ao consumo de energia. Cada resposta de um chatbot com cerca de 100 palavras implica um consumo médio de 0,14 quilowatts-hora (kWh), o suficiente para alimentar 14 lâmpadas LED durante uma hora. Uma solicitação feita ao ChatGPT consome dez vezes mais eletricidade do que uma pesquisa no Google, segundo a Agência Internacional de Energia.

Na Irlanda, onde os data centers se espalham como fogo em capim seco, estima-se que o setor vá consumir 32% da eletricidade total do país até o ano que vem, contra 17% três anos atrás.

Impulsionado em boa parte pela explosão da IA, o número de data centers no mundo saltou de 500 mil, em 2012, para 8 milhões, atualmente, e essa carreira desabalada não vai parar.

Desigualdade

É usual que empresas, não só de tecnologia, se estabeleçam em locais com recursos acessíveis e menores custos operacionais, muitas vezes sem levar em conta impactos sobre as comunidades locais. Quando a demanda de água e energia recai sobre áreas de baixa resiliência hídrica e saneamento precário, quem paga são a sustentabilidade e a qualidade de vida das pessoas.

O principal desafio que se coloca para o futuro da IA não é técnico, mas ético. É imprescindível que se invista em tecnologias inovadoras para minimizar a pegada hidroambiental da IA.

Segundo o professor Virgílio Almeida, do Departamento de Ciência da Computação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), um dos principais especialistas do país no assunto e doutor pela Vanderbilt University, dos Estados Unidos, “existem pesquisas para o desenvolvimento de algoritmos que atenuam a demanda por recursos e otimizem o uso de energia. O modelo chinês [DeepSeek, que abalou os mercados internacionais de IA recentemente] apresentou algoritmos mais eficientes, que necessitam de menos estrutura computacional”.

A professora doutora do Programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC São Paulo, Dora Kaufman, evoca as “várias iniciativas”, como o “projeto do governo brasileiro de data centers sustentáveis” e estudos chineses para resfriamento sem uso de água.

Dora Kaufman é professora doutora do Programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC São Paulo.

Brasil

De fato, o governo federal lançou, há menos de um ano, o Plano “IA para o Bem de Todos”, que abrange o período 2024/2028. Entre seus principais objetivos, destacam-se a busca por “inovações sustentáveis e inclusivas”; a instalação de uma “infraestrutura tecnológica avançada”, incluindo a utilização “de um dos cinco supercomputadores mais potentes do mundo” e a utilização de “energias renováveis”; o desenvolvimento de “modelos avançados de linguagem em português, com dados nacionais que abarcam nossa diversidade cultural, social e linguística, para fortalecer a soberania”; e a formação, capacitação e requalificação “de pessoas em grande escala para valorizar o trabalhador e suprir a alta demanda por profissionais qualificados”.

Os investimentos previstos, de mais de R$ 23 bilhões em quatro anos, só perdem para Estados Unidos e China, de longe os campeões em aporte de recursos – públicos e privados – para a IA. O professor Virgílio observa que, embora “o Brasil ainda não tenha esses centros de teste de modelos, carrega o atrativo de uma matriz energética renovável – hidráulica, eólica e solar –, uma grande vantagem”.

O futuro é logo aqui

O setor ainda caminha em terreno pantanoso, na falta de qualquer marco regulatório. No Brasil, temos o Projeto de Lei nº 2338/2023, que regulamenta o uso da IA no Brasil, “já aprovado pelo Senado e tramitando na Câmara”, cita Almeida. “É preciso, sim, ter uma regulação, pois são muitos os interesses”. O “desconhecimento geral sobre o assunto” é a realidade que precisamos superar, anota o professor do DCC, que prega “mais debate e entendimento mais amplo para aumentar o letramento da sociedade” a respeito.

“Nada é simples envolvendo a IA”, resume Dora Kaufman. “Por que não regular? Essa é a pergunta, mas não é fácil. A tecnologia é transversal, cada setor tem suas especificidades. O protagonismo nesse campo deve ser das agências reguladoras, cada uma em sua área, com a criação de autoridade reguladora nos setores hoje desregulados”.

A professora explica: “Uma regulação única para tudo seria generalista ou daria no que aconteceu na Europa, onde a Lei de IA está sofrendo enorme pressão pela revisão. Antes mesmo de qualquer artigo, a peça traz 180 considerações iniciais, tal a complexidade” do tema, afetando a capacidade “de fiscalização e implementação”.

“Cabe ao Estado proteger a sociedade, mas para o investidor também é fundamental ter regras claras”, considera. E adverte: “Não adianta esperar que as big techs tomem medidas efetivas se não houver uma regulamentação. Quando o interesse comercial conflita com o social, vai prevalecer o comercial”.

Todo o conteúdo visual desta reportagem foi gerado com o uso de Inteligência Artificial. A produção consumiu aproximadamente 0,52 kWh de energia elétrica e 9 litros de água, considerando estimativas médias de uso computacional e refrigeração de data centers. 11

Virgílio Almeida é professor do Departamento de Ciência da Computação da UFMG.

O despertar para a Educação Ambiental

Na bacia do Rio das Velhas, crianças, jovens e comunidades descobrem na Educação Ambiental um caminho possível para mudar a realidade local e salvar suas águas

“Antes era assim: caía o esgoto na cachoeira e o que eu podia fazer? Nada. Mas agora que a gente entende melhor sobre isso, sabemos que temos o poder de mudar e salvar a cachoeira do Sansa.”

A fala é de Bernardo Duarte Silva, estudante de apenas 14 anos da Escola Municipal Honorina Giannetti, de Rio Acima, no Alto Rio das Velhas. Cidadão em formação, ele traduz em palavras simples a força que a Educação Ambiental pode ter diante dos desafios do presente, especialmente em sua cidade, onde nascem importantes cursos d’água que alimentam o Velhas.

Texto: João Alves João Alves

A cachoeira em questão é a do Sansa, com uma queda d’água de mais de 30 metros, localizada no centro da cidade. O local ainda conserva parte de sua vegetação nativa e, apesar de estar bem localizado e acessível ao público, não é próprio para banho. “Uma cachoeira tão bonita e, mesmo assim, não podemos nadar ou usála. Eu acho que precisamos fazer algo”, conclama.

Daniela Campolina é quem lidera a iniciativa pelo EduMite.

Cachoeira do Sansa, em Rio Acima, é palco para ações de Educação Ambiental do Projeto Jovens Cientistas.

Jovens Cientistas

A consciência que despertada em Bernardo ecoa o pensamento de Paulo Freire, educador e filósofo que compreendia a educação como prática de transformação social. “A educação não transforma o mundo. A educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.” Bernardo é uma dessas pessoas, um agente da mudança na bacia do Velhas.

Integrante do projeto “Jovens Cientistas: Nas Águas da Ciência Cidadã”, o estudante, junto a colegas dos anos finais do Ensino Fundamental, mergulha em métodos científicos voltados à análise da qualidade da água na região. Com dados em mãos e olhar crítico, eles não apenas passam a compreender melhor o ambiente em que vivem, mas se tornam capazes de exigir políticas públicas e ações concretas que garantam o uso responsável e a preservação desse bem comum.

Quem lidera essa iniciativa de ciência e Educação Ambiental é a professora Daniela Campolina, coordenadora do grupo de pesquisa EduMite — Educação, Mineração e Território, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Segundo ela, a proposta é oferecer aos alunos uma vivência científica estruturada, baseada no método e na prática investigativa. “Essa sistematização é educativa, dialoga com os currículos nacional e estadual, e também com a ideia de gestão participativa das águas”, explica. Para Daniela, que também é conselheira do Subcomitê Rio Itabirito, a iniciativa representa uma articulação entre ciência, sociedade, escola e o Comitê.

“É uma faixa etária estratégica, porque estamos falando de jovens que viverão em um planeta impactado pela crise climática e por eventos extremos. Eles precisam estar preparados para isso”, destaca.

Texto: João Alves
Aluno participante do projeto, Bernardo Silva acredita e trabalha pela recuperação de um dos símbolos da sua cidade.
João Alves
João Alves

Entre as atividades realizadas pelo projeto estão: análises biológicas; identificação de bioindicadores sensíveis à qualidade da água; exames físico-químicos; elaboração de abaixo-assinados; construção do histórico ambiental da região; campanhas de conscientização; e até a produção de artigos científicos. Esse senso de responsabilidade já se reflete no cotidiano dos alunos da escola municipal. “Há pouco tempo, fizemos uma carta que entregamos às autoridades, tentando resolver esse problema, melhorar a qualidade da água, para que a gente possa usufruir desse recurso e transformar o nosso espaço, o Sansa, em um parque. Assim, tanto os turistas, quanto nós, moradores de Rio Acima, poderíamos aproveitar essa cachoeira. Porque não é qualquer lugar que tem uma cachoeira, principalmente no centro da cidade”, explicou Bernardo.

Ações como o projeto “Jovens Cientistas: Nas Águas da Ciência Cidadã” se conectam a um plano mais amplo, que tem como objetivo despertar no cidadão a consciência ambiental e o senso de responsabilidade sobre os recursos hídricos.

Velhas Vivo

Aprovado em 2024, o Plano de Educação Ambiental (PEA) do CBH Rio das Velhas representa um marco estratégico para a preservação e revitalização da bacia. Intitulada Programa Velhas Vivo, a iniciativa nasce do diálogo com as realidades e necessidades locais, articulando os esforços de prefeituras, escolas, instituições e organizações da sociedade civil em torno de um propósito comum: fortalecer a consciência ambiental e o sentimento de pertencimento das populações dos 51 municípios à bacia do Rio das Velhas e seus afluentes.

Sua elaboração foi conduzida por um processo participativo e territorializado. Antes da aprovação, o Comitê realizou um amplo diagnóstico que mapeou quase 300 iniciativas representativas de Educação Ambiental em toda a bacia, identificando boas práticas, projetos consolidados e as principais demandas das 23 Unidades Territoriais Estratégicas (UTEs). Conselheiros, Subcomitês, a Câmara Técnica de Educação, Mobilização e Comunicação (CTECOM) e a Diretoria Ampliada do Comitê atuaram e subsidiaram a construção do documento.

A articulação proposta pelo PEA confere unidade, direção e capilaridade às ações educativas no território. “É uma forma de organizar e dar mais força ao que já é feito, construindo uma atuação mais integrada, comunicativa e eficaz junto à população”, destaca Ronald Guerra, vice-presidente do CBH Rio das Velhas. Com raízes fincadas no território e legitimidade social, o Programa Velhas Vivo aponta caminhos para uma transformação duradoura, que combina educação, pertencimento e sustentabilidade.

Para além do campo institucional, o PEA também se propõe a dialogar com os sonhos e aspirações das comunidades ribeirinhas e escolares. Um dos principais símbolos dessa mobilização é a “Meta 2034”, proposta para despoluição do Rio das Velhas em seu trecho metropolitano. Mais do que uma meta ambiental, trata-se de um ideal coletivo que move o imaginário e convida a sociedade à corresponsabilidade pela transformação do território. “Isso é um sonho”, diz Ronald. “Mas um sonho que fortalece o pertencimento e desperta o desejo de participação ativa.”

Nesse sentido, a Educação Ambiental é compreendida não apenas como um processo formativo, mas como ferramenta de transformação social. Ao associar metas concretas, como o retorno dos peixes e a melhoria da qualidade da água, a ações de sensibilização, o CBH Rio das Velhas constrói uma narrativa de esperança e corresponsabilidade.

Esse espírito de união e celebração também se manifesta na Semana Rio das Velhas, realizada anualmente em comemoração ao Dia do Rio, 29 de junho. A edição mais recente promoveu uma programação intensa, com atividades educativas e culturais em vários municípios, Diálogos Regionais entre os Subcomitês, Encontro dos Amigos do Rio e Plenária Comemorativa. Para o vicepresidente, a Semana tem um papel fundamental de mobilização e renovação de forças. “O rio reflete a nossa própria qualidade civilizatória. Assim, celebrar o Velhas é também reafirmar o compromisso com um futuro mais digno, biodiverso e sustentável para todos que vivem e dependem de suas águas”, afirma.

29 de junho, Dia do Rio das Velhas foi celebrado em Contagem com diversas atividades educativas e culturais.
Quiz Ambiental movimentou escolas da bacia durante a Semana Rio das Velhas 2025
João Alves
João Alves
João Alves

Educação Sanitária na Pampulha

Com o objetivo de alcançar diferentes públicos, o PEA do CBH Rio das Velhas aposta em ações que vão além do ambiente escolar e mobilizam amplamente a sociedade. Um dos exemplos mais recentes e expressivos dessa abordagem é o Grupo de Mobilização e Educação Ambiental e Sanitária da Bacia da Pampulha (GMEA).

Nascido no Subcomitê Ribeirão Onça, o GMEA Pampulha surgiu da necessidade de fortalecer a mobilização social e o engajamento comunitário nas ações de recuperação ambiental da região. Como parte do Programa Reviva Pampulha – que visa à revitalização da Lagoa por meio da universalização do saneamento básico na bacia –, o grupo tem o objetivo de articular moradores, lideranças comunitárias, usuários de água, representantes do poder público e organizações ambientais para atuar na preservação e revitalização da região.

Segundo Sirlene Santos, coordenadora do Subcomitê Ribeirão Onça, o grupo definiu como território prioritário de atuação a sub-bacia do córrego Bom Jesus, considerada estratégica pela sua relevância socioambiental. A partir dessa escolha, foi criada uma comissão dedicada à produção de materiais didáticos e à formulação de atividades educativas voltadas à sensibilização da população.

Uma das ações implementadas pelo grupo foi o Circuito de Percepção Ambiental, voltado especialmente ao público adulto e a formadores de opinião. A proposta tem como foco despertar uma nova leitura sobre o território e a relação das pessoas com o meio ambiente. O circuito já tem edições programadas para os meses de agosto, setembro e novembro, com apoio logístico da Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais). “A maior conquista do GMEA foi a aceitação e o envolvimento dos diversos atores com a proposta do grupo”, afirma Sirlene. Para ela, o engajamento coletivo tem sido essencial para ampliar o alcance das ações e garantir sua continuidade.

Além do circuito, o grupo também tem promovido ciclos de palestras nas escolas da região. Cada um contribui com conteúdos e abordagens complementares, fortalecendo o trabalho em rede. “Cada parceiro tem uma atividade. A gente fala do grupo como um todo, de como cada um tem um papel, mas leva sua própria palestra”, explica Sirlene. Participam dessa frente a Copasa, associações da sociedade civil, o Propam (Programa de Recuperação e Desenvolvimento Ambiental da Bacia da Pampulha) e a Secretaria de Meio Ambiente de Contagem. “Estamos todos juntos pelas águas”, resume Sirlene, sintetizando o espírito colaborativo que sustenta o GMEA e impulsiona a transformação socioambiental da bacia.

A experiência na bacia do Rio das Velhas demonstra que a Educação Ambiental é, antes de tudo, uma poderosa ferramenta de transformação social, capaz de despertar o sentimento de pertencimento e a responsabilidade coletiva pela preservação dos recursos naturais. Seja por meio do envolvimento de jovens cientistas, como Bernardo, das mobilizações comunitárias articuladas pelo GMEA, seja pelas políticas integradas propostas pelo Plano de Educação Ambiental, a mobilização em torno do Velhas reflete a urgência e o compromisso com a construção de um futuro mais sustentável, o mais rápido e articulado possível.

Em março deste ano, evento em Contagem marcou primeiro encontro do GMEA Pampulha junto com a comunidade.

Licenciamento ambiental a passos largos: desenvolvimento econômico a qualquer custo?

Texto: Luiza Baggio

Congresso afrouxa regras e presidente sanciona lei com vetos; em Minas, propriedades rurais de até mil hectares têm licenciamento dispensado

Colagem: Albino Papa

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou com vetos, no dia 08 de agosto, o projeto de lei aprovado no Congresso que fragiliza regras para o licenciamento ambiental. Dos quase 400 dispositivos da lei que receberam aval no Legislativo, o presidente vetou 63, evitando a implementação da licença automática, reforçando a proteção de áreas sensíveis e garantindo a exigência de estudos de impacto ambiental para projetos prioritários.

A lei é oriunda do Projeto de Lei nº 2159/21, que foi aprovado pelo Congresso em julho deste ano. O texto vinha sendo duramente criticado principalmente por flexibilizar regras do licenciamento ambiental e por representar riscos significativos à proteção do meio ambiente e das bacias hidrográficas, como a do Rio das Velhas.

O objetivo dos vetos foi, segundo o governo e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, fortalecer a proteção ao meio ambiente, mas sem fechar portas de negociação com o Congresso. Em outras palavras, não atendeu todas as expectativas dos ambientalistas, mas diminuiu exageros que fizeram com que fosse chamado pelos ambientalistas de “PL da Devastação”. Por outro lado, agradou investidores e empreendedores ao manter a Licença Especial Ambiental, que é um processo simplificado, em casos de obras de infraestruturas consideradas de grande importância para o país.

A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, destacou a importância dos ajustes na nova lei para que o Brasil chegue às metas ambientais e climáticas já anunciadas. “Eu já sinalizava que nós iríamos fazer vetos estratégicos para preservar a integridade do licenciamento. E isso ficou assegurado. Então, as nossas metas em relação a desmatamento zero e a reduzir entre 59% e 67% das emissões de CO2 estão perfeitamente mantidas, porque você não tem a abdicação do processo de licenciamento”, disse.

Foram vetados itens que transferiam da União para os estados a responsabilidade por estabelecer critérios e procedimentos de licenciamento, como os critérios de porte e de e potencial poluidor. A intenção foi garantir a obediência a padrões nacionais e evitar concorrência entre estados para atrair investimentos, com riscos de “guerra ambiental” que poderiam fragilizar a proteção do meio ambiente.

No entanto, a decisão do presidente da República será devolvida ao Congresso, que pode derrubar os vetos presidenciais e restaurar a versão anterior. O governo, no entanto, aposta no diálogo para manter as modificações.

PL da Devastação

O Projeto de Lei nº 2.159/2021, que institui a Lei Geral do Licenciamento Ambiental (LGLA), foi aprovado pelo Congresso com o objetivo de uniformizar e simplificar os processos de licenciamento em todo o país. No entanto, foi duramente criticado por ambientalistas e teve parte modificada pelo Executivo. Entre os principais pontos, destacou-se a reformulação da base do licenciamento ambiental brasileiro ao flexibilizar regras e permitir a dispensa de licenças para uma série de atividades, especialmente no setor agropecuário. A lei ampliou o uso da Licença por Adesão e Compromisso (LAC) inclusive para empreendimentos de médio impacto, por meio de autodeclaração e sem análise técnica prévia – medida que contraria decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e ignora o princípio da precaução.

O texto também desvinculou o licenciamento da outorga de uso da água e da regularização do solo, fragilizando a gestão ambiental integrada e aumentando o risco de degradação e conflitos. Além disso, enfraqueceu a participação de órgãos técnicos como a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístic o Nacional) e ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), cujas manifestações deixaram de ter poder de veto, mesmo em casos que envolvem territórios não regularizados e unidades de conservação.

As condicionantes ambientais foram fragilizadas e o projeto de lei não estabeleceu critérios nacionais mínimos para o licenciamento, repassando a definição aos estados e municípios, o que, segundo especialistas, pode gerar insegurança jurídica.

Para o Senado, a medida representou uma resposta à “burocracia excessiva” que emperrava investimentos no país. Segundo a senadora Tereza Cristina (PP-MS), a legislação ambiental brasileira era um “cipoal” com mais de 27 mil normas. A nova lei, na avaliação de seus defensores, trará segurança jurídica e agilidade à liberação de projetos.

Ex-ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina foi uma das principais articuladoras do PL no Senado.

Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva destacou a importância dos vetos em relação às metas climáticas do país.
Lula Marques / Agência Brasil José

FIEMG avalia vetos como retrocesso

A Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG) classificou como um grave retrocesso o veto presidencial a 63 dispositivos da nova Lei de Licenciamento Ambiental e a apresentação de uma Medida Provisória e de um Projeto de Lei para suprir as lacunas deixadas pelos vetos. Para a entidade, a decisão do governo compromete o desenvolvimento sustentável do país. Em resposta, a FIEMG atuará pela derrubada das restrições junto aos parlamentares, como parte do movimento lançado no último mês: “Licenciar não é destruir”.

Segundo a Federação, os vetos enfraquecem um marco regulatório que, embora não tenha alterado parâmetros de proteção de áreas de preservação permanente, reservas legais, emissões atmosféricas e efluentes líquidos, trouxe celeridade, previsibilidade e segurança jurídica ao processo de licenciamento no Brasil — condição essencial para atrair investimentos, destravar obras públicas e gerar empregos.

“Eu acredito que os vetos são um retrocesso para o país. Infelizmente, nessa pauta ambiental, as pessoas não compreendem a função do licenciamento, que é fazer com que as empresas sigam a lei. E a nova lei do licenciamento não alterou nenhum parâmetro do que as empresas têm que fazer ou não do ponto de vista ambiental, ela só deu celeridade e segurança jurídica ao processo”, disse o presidente da FIEMG, Flávio Roscoe, em entrevista à imprensa, no dia 08 de agosto.

Na avaliação da FIEMG, a decisão do governo federal de vetar 63 dispositivos desrespeita o Congresso Nacional, a Constituição da República, em especial o seu artigo 23, bem como a Lei Complementar nº 140/2011. A entidade destaca que o texto foi discutido por mais de 20 anos no Legislativo e aprovado pela primeira vez na Câmara dos Deputados em 2021, com 300 votos favoráveis e 122 contrários. Na votação de retorno, em julho deste ano, recebeu 267 votos a favor e 116 contrários. No Senado, foi aprovado em maio de 2025 por 54 votos a 13.

Câmara dos Deputados aprovou o substitutivo do PL 2159/21na madrugada de 17 de julho.
Lula Marques

Manifesto e crítica de organizações

Mais de 350 entidades de diferentes áreas lançaram um manifesto conjunto contra a proposta, entregue a parlamentares e integrantes do governo. O grupo reuniu movimentos populares, organizações indígenas, ambientalistas, instituições acadêmicas e sindicais, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e o Observatório do Clima.

Para a SBPC, a lei representava o maior retrocesso ambiental desde a redemocratização e era incompatível com os compromissos do Brasil no Acordo de Paris. O físico Paulo Artaxo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos principais cientistas do IPCC (Painel Climático da Organização das Nações Unidas - ONU), afirmou que a medida desestruturava um dos instrumentos centrais de proteção ambiental no Brasil. “Essa lei modifica, para pior, todo o processo de licenciamento ambiental no nosso país. O licenciamento é o instrumento que o Estado tem para proteger os bens públicos: nossos rios, florestas e o ar que respiramos”, disse.

O CBH Rio das Velhas também manifestou repúdio à aprovação, pelo Senado Federal, do Projeto de Lei, por meio de Nota Pública. “Consideramos esta proposta um retrocesso sem precedentes na política ambiental brasileira. O texto aprovado desmonta os pilares do licenciamento ambiental no país, ignorando deliberadamente a gravidade da crise climática, os compromissos assumidos pelo Brasil em tratados internacionais e os princípios constitucionais que garantem o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, destacou a nota.

Reflexo em Minas Gerais

Em paralelo ao cenário nacional, Minas Gerais seguiu a mesma trilha e anunciou a dispensa de licenciamento ambiental para propriedades rurais de até 1.000 hectares voltadas à pecuária extensiva e ao cultivo de lavouras anuais. Além disso, o Governo de Minas pretende reenquadrar a atividade pecuária como de pequeno potencial poluidor no estado. A decisão foi apresentada em junho pelo governador Romeu Zema (Novo) e aprovada no dia 24 de julho pelo Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam).

Com a alteração, algumas atividades agropecuárias, sobretudo a criação de animais em regime extensivo (como gado, cavalos e cabras) e o cultivo de lavouras (como milho, café e soja), passam a ser classificadas como de baixo potencial poluidor para o ar e a água. Além das mudanças para o setor agropecuário, o Copam também aprovou, na mesma reunião, uma proposta da Câmara do Mercado Imobiliário de Minas Gerais (CMI) que retira um critério usado para avaliar o impacto ambiental de empreendimentos em geral. Esse critério dava peso máximo a projetos em áreas com vegetação considerada muito importante para a conservação da natureza. Com a mudança, empreendimentos nessas regiões poderão passar por processos de licenciamento mais simplificados.

A secretária de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Marília Melo, foi responsável por dar os anúncios durante o evento Megaleite 2025. Em sua fala, a titular da pasta defendeu que ocorra uma promoção de desenvolvimento sustentável no estado, mas afirmou que o meio ambiente não poderia ser “entrave”, nem ter “amarras burocráticas”.

A primeira medida anunciada é voltada aos setores de pecuária extensiva (criação de gado) e de culturas anuais, como café, soja e milho. Conforme Marília, a dispensa do licenciamento ambiental para essas prioridades, de até mil hectares, será pautada pelo Copam (Conselho Estadual de Política Ambiental). “Isso significa oportunidade de regularização ambiental aos produtores rurais, que prestam importante serviço ambiental para toda a sociedade. Nosso estado tem 30% de vegetação nativa, então, nossa agricultura em Minas é sustentável”, argumenta.

A dispensa do licenciamento ambiental para propriedades rurais de até 1.000 hectares foi considerada, pelo presidente da Faemg (Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais), Antônio Pitangui de Salvo, uma medida importante para a evolução do setor. “A mudança vai facilitar muito, tanto para os órgãos ambientais na sua fiscalização, que deixarão de exigir um papel, que na realidade não protege o meio ambiente. Por outro lado, traz melhorias para a produção mineira, na qual essa licença ambiental nada mais era que uma burocracia cara e dificultosa, principalmente para os pequenos produtores”, afirmou.

No entanto, para pesquisadores e defensores da causa ambiental, a dispensa no licenciamento ambiental trata-se de mais um passo perigoso na direção oposta à preservação. O coordenador do Projeto Manuelzão e vice-presidente do CBH do Rio São Francisco, Marcus Vinícius Polignano, vê a decisão como um retrocesso. “Dispensar o licenciamento para áreas de até 1.000 hectares é ignorar a complexidade ambiental. São grandes áreas, com impactos acumulativos e sistêmicos. Não se trata de ideologia, mas de responsabilidade com o futuro”, alertou.

Físico integrante do IPCC, Paulo Artaxo foi uma das principais vozes contra o PL então aprovado no Congresso.
Marcos Oliveira / Agência
Senado

Além dessa mudança, a secretária de Meio Ambiente também anunciou que uma portaria do IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas) instituirá uma outorga sazonal nas bacias do Rio São Francisco e do Paraíba do Sul. No caso, haverá 50% a mais de disponibilidade hídrica no período de chuva para fomento da agricultura irrigada nas regiões.

O professor Klemens Laschefski, do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi direto: “O que está em curso é a desconstrução do Sistema Ambiental do Estado de Minas Gerais. A flexibilização não visa ajudar os pequenos produtores, mas blindar os grandes empreendimentos de suas responsabilidades socioambientais”, afirmou.

Coordenador do Projeto Manuelzão e vice-presidente do CBHSF, Marcus Vinícius Polignano

Dispensar o licenciamento para áreas de até 1.000 hectares é ignorar a complexidade ambiental. São grandes áreas, com impactos acumulativos e sistêmicos. Não se trata de ideologia, mas de responsabilidade com o futuro.

Marcus Vinícius Polignano, vice-presidente do CBH do Rio São Francisco.

Anúncio sobre dispensa de licenciamento em MG foi feito pela secretária de Meio Ambiente, Marília Melo, durante o evento Megaleite 2025.
crê em retrocesso com a nova medida em Minas.
Cristiano
Costa
Cristiano
Minas

Entenda os principais vetos ao PL nº 2159/21

Limitação da LAC (Licença por Adesão e Compromisso)

a empreendimentos de baixo potencial poluidor, impedindo sua ampliação para atividades de médio risco, como barragens de rejeitos.

Preservação da atuação de gestores de Unidades de Conservação,

com veto à retirada do caráter vinculante de suas manifestações técnicas.

Preservação de padrões nacionais no licenciamento,

evitando que estados da federação e municípios definam, de forma isolada, critérios que possam gerar competição ambiental predatória.

Adoção da LAE (Licensa Ambiental Especial) com processo faseado,

vetando o modelo monofásico que autorizaria todas as licenças simultaneamente.

Proteção da Mata Atlântica,

com veto à retirada do regime especial de proteção à supressão de vegetação nativa.

Responsabilização de instituições financeiras,

mantendo a exigência de que apenas empreendimentos licenciados possam obter financiamento.

Garantia de participação de povos indígenas e comunidades quilombolas,

vetando trecho que restringia a consulta a territórios não homologados.

Apesar

Exigência de CAR (Cadastro Ambiental Rural) analisado para dispensa de licenciamento, vetando dispositivo que dispensava o procedimento mesmo com o cadastro ambiental rural pendente.

dos vetos, foram mantidos diversos aspectos da proposta original do Congresso, como:

Manutenção de condicionantes ambientais para impactos indiretos,

evitando que empreendimentos escapem da responsabilidade sobre efeitos que afetam, por exemplo, serviços públicos.

Consolidação de normas hoje dispersas em uma lei única, elevando seu status e promovendo segurança jurídica.

Definição de prazos para análise dos pedidos de licenciamento.

Criação da LAE, com regras mais claras e parâmetros unificados.

Previsão de aumento de pena para quem operar atividades sem licenciamento ambiental.

Arte: Albino Papa com Iteligência Generativa

O Expedicionário e o Vale do Taquaraçu

A história do ímpeto científico e desbravador de um barão alemão que colocou o Vale do Rio Taquaraçu no roteiro de uma das mais importantes expedições científicas do século XIX

Texto: Arthur de Viveiros

O ano era 1824. O Brasil, àquela altura um jovem império, recémapartado de Portugal, conduzia o processo de outorga de sua primeira Constituição. Em 25 de março, o imperador Dom Pedro I promulgou o texto que buscava estabelecer a organização política e institucional de um território continental e, naquele momento, autônomo. O país tornou-se então uma monarquia constitucional hereditária e foram estabelecidos quatro poderes fundamentais: Executivo, Legislativo, Judiciário e o Poder Moderador – este último exercido exclusivamente pelo Imperador.

Nesse contexto de efervescência política, estruturação de um país que engatinhava, buscando sua posição no mundo, um médico e diplomata alemão ocupava o cargo de cônsul geral da Rússia no Brasil. Nomeado pelo Czar Alexandre I, o barão Georg Heinrich von Langsdorff desembarcou no Brasil em 1813, mais precisamente no Rio de Janeiro, capital do Império, onde estabeleceu morada. Lá mesmo, o naturalista e cientista viajante fundou, em 1816, a Fazenda Mandioca, uma propriedade rural situada ao fundo da Baía de Guanabara, que se tornou polo científico para diversos pesquisadores estrangeiros que chegavam à capital imperial.

Sob este ímpeto e vocação científica, em 1821, o barão apresentou ao Czar Alexandre I um audacioso plano expedicionário, que percorreria o Brasil interiorano, em busca de um registro etnográfico e naturalista dessa parte do território nacional. A apresentação foi tão consistente que o Czar, líder supremo do Império Russo, logo aprovou o plano e patrocinou a empreitada.

Composição da equipe e resumo do caminho

Com o aval do mandatário russo, era o momento de montar a equipe que o seguiria. A ideia era compor um grupo multidisciplinar que pudesse, por meio de desenhos e relatos manuscritos, registrar as peculiaridades naturais e humanas do interior do Brasil. Sendo assim, ele convocou Edouard Ménétriès, naturalista francês; Nester Rubtsov, astrônomo russo; e os compatriotas alemães Johann Moritz Rugendas, pintor; Ludwig Riedel, botânico; Georg Wilhelm Freyreiss, caçador e naturalista; e Christian Friedrich Hasse, zoólogo.

Entre os anos de 1822 e 1824, o grupo promoveu incursões pelo estado do Rio de Janeiro e nos arredores da fazenda de Langsdorff, localizada onde hoje está o município fluminense de Magé. Já entre 1824 e 1825, os expedicionários percorreram o interior de Minas Gerais. Numa segunda etapa da viagem, realizada entre 1825 e 1829, a expedição ganhou os rios do Brasil. Por vias fluviais, Langsdorff saiu de Porto Feliz, às margens do Rio Tietê, em São Paulo, até Cuiabá, encerrando as atividades em Belém do Pará, percorrendo, ao todo, 17 mil quilômetros.

Ao fim do percurso, segundo relatos da equipe, o médico alemão estava extremamente doente, em virtude das diversas vezes em que foi acometido por malária. Com graves perdas de memória, Langsdorff voltou à Alemanha e faleceu em 1852, aos 78 anos.

Os caminhos das Minas Gerais

Foi em maio de 1824 que o barão e os expedicionários partiram rumo a Minas Gerais. A expedição passou então por Barbacena, São João del-Rei e Tiradentes, que formavam a Comarca do Rio das Mortes, atual Região do Campo das Vertentes. O grupo seguiu por Ouro Preto e entorno, Sabará, Caeté e Santa Luzia, na então Comarca do Rio das Velhas, atual Região Metropolitana de Belo Horizonte. Os expedicionários encerraram a empreitada mineira em Serro do Frio, atual Serro, no Vale do Jequitinhonha, após uma passagem por Barão de Cocais.

Ao longo do percurso, o barão de Langsdorff registrou, em um diário completo, detalhes e impressões sobre a fauna e flora, sobre as condições de moradia e também sobre as principais atividades econômicas do caminho. Neste documento, publicado no Brasil pela Editora Fiocruz, em 1997, o expedicionário narra, com ricos detalhes, a realidade da época de parte da bacia do Rio das Velhas, principalmente no Vale do Rio Taquaraçu.

Um dexemplo desses preciosos relatos foi feito no dia 04 de outubro de 1824. “Santa Luzia situa-se próxima ao rio das Velhas, que aqui ainda não é muito grande, mas abundante em peixes. Os peixes mais comuns aqui são: dourado, surubim, surubimcassonete e surubim-loango, curimatã, piau, piabanha, curubixá, que não tem espinhas; matrinxã, mandi, mandiaçu, traíra, pirá, piranha, cascudo, jaú, piaba e outros”, escreveu Langsdorff.

Logo no trecho seguinte, o barão alemão fala sobre a composição do solo e das águas. “Nas vizinhanças, existem jazidas abundantes de cal e salitre, além de barreiros ou locais onde o gado, cervos e pombos selvagens se reúnem em bandos para comer dessa terra ou lambê-la. A região é salubre durante o ano todo, há muito vento, e, às vezes, ventos fortes. Nas redondezas, existem muitos lagos piscosos”. Ele finaliza. “De maneira geral, as redondezas do rio das Velhas são muito saudáveis”.

Mobilizadora social e liderança da ONG ‘Pé de Urucum’, Derza Nogueira destaca a riqueza dos relatos de Langsdorff. “Ele descrevia as condições de fauna, de flora, com foco nas espécies de pássaros, mamíferos e peixes que iam sendo encontradas ao longo do percurso. Além disso, Langsdorff também observava as condições de plantio, as técnicas utilizadas nas lavouras das fazendas que ofereciam pouso, recomendando, inclusive, técnicas sustentáveis de produção”.

Ainda próximo à Santa Luzia, ele escreveu: “é de se estranhar que os habitantes locais matem por simples diversão - isso eu posso atestar - o tamanduá, o mais útil de todos os animais, criado por Deus Amado para livrar o homem da fome, uma vez que ele come as formigas devastadoras e destrutivas”.

Briga com Rugendas e estalagens

A bacia do Rio das Velhas ainda foi palco de um desentendimento entre Langsdorff, já com 50 anos, e Johann Rugendas, àquela altura, um jovem pintor de 22 anos. Tudo aconteceu em Jequitibá - à época ‘Barra do Jequitibá’ - no dia 1º de novembro de 1824, como relatado no diário da expedição. A troca de insultos ocasionou o desligamento de Rugendas da expedição. O célebre pintor alemão não seguiria para a segunda parte da viagem, de 1825 a 1829. Rugendas foi então substituído pelos artistas franceses Aimé-Adrien Taunay e Hercule Florence.

“O legado de Langsdorff significa muito para nosso estado e para o Brasil. Este foi um período áureo do desenvolvimento do conhecimento botânico, zoológico, mineralógico e etnográfico sobre o Brasil, tudo isso graças aos diversos expedicionários europeus que por aqui passaram, sendo Langsdorff um dos mais relevantes”, ressalta a geógrafa Márcia Maria Duarte dos Santos, especialista em cartografia histórica e docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela lembra ainda do importante papel dos artistas que acompanharam o alemão na empreitada. Foi Hercule Florence (1804-1879), desenhista francês, que reuniu todo o material e o enviou à Rússia, que guarda todo esse acervo até os dias atuais.

Ao longo do caminho, os expedicionários ficavam hospedados em estâncias da região, ricas fazendas e pequenas propriedades.

As tradicionais estâncias do Vale do Taquaraçu recebiam a comitiva de Langsdorff em sua empreitada no século IX.

Bernardo Mascarenhas

‘Habitantes de Minas Gerais’, de Johann Moritz Rugendas, datada entre 1822 e 1825, como parte de seu livro ‘Viagem Pitoresca Através do Brasil’.

Em 2025, os caminhos encravados no Vale do Taquaraçu foram os protagonistas da 1ª Expedição TaquaraDorff.

Bernardo Mascarenhas
Arthur de Viveiros

Refazendo o caminho

Seguindo os passos do barão alemão pelo Vale do Rio Taquaraçu e comemorando os 200 anos da passagem da comitiva por Minas Gerais, um grupo de expedicionários realizou, no fim do último mês de maio, uma jornada de cinco dias, que percorreu os municípios de Bom Jesus do Amparo, Nova União e Taquaraçu de Minas. Dezenas de cavaleiros e caiaqueiros refizeram, dois séculos depois, parte do caminho desbravado por Langsdorff. A iniciativa contou com o apoio do CBH Rio das Velhas e do Subcomitê Rio Taquaraçu.

Desta vez, o intuito não era, necessariamente, desbravar as alterosas nas cercanias da Região Metropolitana da capital mineira. Quem embarcou nessa empreitada ressalta que, em 2025, a ideia foi lançar mão das memórias de um território em prol da sua preservação. “Quem não conhece o passado não preserva o presente: por isso estamos aqui hoje, refazendo o caminho do Barão de Langsdorff. Queremos levar essa mensagem de preservação da memória em prol do avanço ambiental”, aponta Derza Nogueira.

“O que é o Rio Taquaraçu? Ele é um dos principais afluentes do Rio das Velhas e nosso esforço aqui na sub-bacia é transformá-lo em um rio classe 01, ou seja, melhorar, cada vez mais, a qualidade das águas desse território. Há 200 anos, o barão de Langsdorff passou por aqui e, hoje, o que esperamos é um envolvimento da sociedade civil, da classe política, da população deste lugar. Este não é um projeto dos cavaleiros, dos caiaqueiros, é um projeto de todos dessa bacia”, destaca Walter Caetano. Conhecido como “Waltinho”, o experiente cavaleiro é produtor rural em Nova União e membro do Subcomitê Rio Taquaraçu.

Ao todo, a expedição ‘Taquaradorff 2025’ percorreu 70 quilômetros a cavalo e 25 quilômetros por via fluvial, em caiaques. Durante todo o percurso, os expedicionários compartilhavam uníssonos as mesmas mensagens de preservação do Rio Taquaraçu, de sua sub-bacia, em prol da quantidade e qualidade das águas na bacia do Rio das Velhas.

Mais sobre o território

O Vale está inserido na Unidade Territorial Estratégica (UTE) Rio Taquaraçu, localizada no Médio-Alto Rio das Velhas. Seu território abriga os municípios de Caeté, Jaboticatubas, Nova União, Santa Luzia e Taquaraçu de Minas, em uma área total de 795,5 km².

Região produtora de água, o território apresenta diversos cursos d’água relevantes, sendo os principais o Rio Taquaraçu, Rio Vermelho, Ribeirão Ribeiro Bonito e Rio Preto. Apesar de receber lançamentos de esgotos de várias cidades do seu entorno, o Rio Taquaraçu ainda apresenta boa qualidade de água, sendo um berçário natural de peixes nativos da bacia do Rio das Velhas.

Em matéria de relevo, a região possui topografia diversa. Belos vales e serras suntuosas compõem o cenário que abriga grande produção agropecuária, focada em produtos típicos do estado de Minas Gerais, como a cachaça. “Este território é fundamental para toda a bacia do Rio das Velhas, visto que apresenta boa qualidade de água e potenciais turísticos, socioeconômico e ambiental gigantescos”, ressaltou João Sarmento, representante do Instituto Estadual de Florestas (IEF), conselheiro do CBH Rio das Velhas e coordenador do Subcomitê Rio Taquaraçu.

“A nossa região é produtora de água, um berçário de peixes, temos que cuidar desse rio. Quero que as pessoas entendam que, sem esse ecossistema, não somos nada. Vamos preservar o Vale do Rio Taquaraçu, e contamos com a parceria do CBH Rio das Velhas e do Subcomitê Rio Taquaraçu”, ressaltou Jânio Marques, ex-coordenador do Subcomitê e liderança da equipe de caiaque da expedição.

O Rio Taquaraçu encerra seu curso no encontro com o Rio das Velhas, em Santa Luzia, importante município da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Assim como Walter Caetano e Jânio Marques, cavaleiros e caiaqueiros se uniram em comemoração aos 200 anos da expedição.

Quer saber mais sobre a ‘Expedição Taquaradorff 2025’ e sobre o território do Vale do Rio Taquaraçu? Assista agora ao vídeo produzido pelo CBH Rio das Velhas! bit.ly/TaquaraDorff2025

Carlos Nobre: “Estamos muito próximos de pontos de não retorno em vários biomas brasileiros”

Cientista e climatologista fala sobre riscos de colapso em biomas e bacias hidrográficas

brasileiros, e aponta caminhos urgentes para preservar as águas do país – inclusive o Rio das Velhas

As águas do Rio das Velhas, assim como de tantos outros rios brasileiros, estão sob pressão. Em meio à intensificação das mudanças climáticas, desmatamento desenfreado e avanço de atividades econômicas intensivas, a resiliência hídrica das bacias hidrográficas do país está em xeque. Para o cientista Carlos Nobre, referência mundial em mudanças climáticas e pesquisador da Amazônia e suas interações com o clima global, o Brasil está “muito próximo de pontos de não retorno” em vários de seus biomas — e, com isso, também em seus sistemas hídricos.

“Desde o segundo semestre de 2023, a temperatura média global já atingiu 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais”, alerta o climatologista. “Isso intensifica a frequência e a severidade de eventos extremos, como ondas de calor, secas, chuvas excessivas e incêndios florestais. É lógico que essa mudança no balanço hidrológico em todo o mundo afeta diretamente, de forma muito forte, as bacias hidrográficas.”

Carlos Nobre foi o primeiro cientista a publicar, ainda nos anos 1990, sobre os riscos de colapso da Amazônia caso o desmatamento avançasse além de certos limites. Hoje, ele vê esse prognóstico se aproximando — e sendo ampliando para outras regiões. “O Brasil tem seis biomas. E quatro deles — Amazônia, Cerrado, Caatinga e Pantanal — estão à beira do ponto de não retorno”, anuncia.

A bacia do Rio das Velhas, segundo dados do MapBiomas, foi a sétima sub-bacia brasileira que mais perdeu superfície de água nas últimas três décadas: uma redução de 40%. Para Nobre, esse dado é reflexo direto da perda de vegetação nativa e da intensificação das secas. “A combinação — menos chuva e menos vegetação — é o motivo da diminuição da área coberta por água nas bacias da região”, aponta.

Nesta entrevista exclusiva à Revista Velhas, Carlos Nobre compartilha sua visão sobre os desafios climáticos que impactam os rios brasileiros, propõe soluções baseadas em ciência e conhecimento tradicional, e reforça o papel vital das comunidades locais na proteção das águas.

Cientista Carlos Nobre é referência mundial em mudanças climáticas e profundo pesquisador da Amazônia e suas interações com o clima global.
Marcelo Camargo / Agência Brasil

O senhor tem alertado, há décadas, sobre os riscos do aquecimento global. Como esses impactos já estão se manifestando nas bacias hidrográficas brasileiras?

Estamos vivendo, sem dúvidas, uma emergência climática. Desde o segundo semestre de 2023, a temperatura média global já atingiu 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais. Isso intensifica a frequência e a severidade de eventos extremos, como ondas de calor, secas, chuvas excessivas e incêndios florestais. É lógico que essa mudança no balanço hidrológico em todo o mundo afeta diretamente, de forma muito forte, as bacias hidrográficas. Por um lado, temos megassecas. Tivemos, por exemplo, a maior seca da história da Amazônia. Nunca os rios da Amazônia estiveram tão baixos quanto no segundo semestre de 2023 e, principalmente, em 2024. Isso afetou totalmente as bacias hidrográficas desses rios.

E o oposto também está acontecendo: chuvas excessivas. Chuvas que estão batendo recordes em todo o mundo. Tivemos, por exemplo, o recorde de chuvas no Rio Grande do Sul, em maio de 2024. E aí, quando temos chuvas muito fortes, enfrentamos o problema do desmatamento. Por décadas, foram desmatadas praticamente todas as matas ciliares, e isso causa um impacto muito grave. Sem a mata ciliar, o solo não absorve a água das chuvas fortes, e o resultado é uma megaerosão. Esse solo vai para os rios, afeta a biodiversidade aquática, aumenta o nível da água e causa inundações.

Esses são os fenômenos que estão afetando muito todas as bacias hidrográficas. De um lado, as secas recordes; do outro, as chuvas extremas. E o Brasil é um dos países com as maiores bacias hidrográficas. Isso só reforça os riscos que estamos enfrentando com os eventos climáticos extremos.

A bacia do Rio das Velhas, segundo estudos do MapBiomas, registrou perda de 40% de superfície de água nos últimos 30 anos. Quais são os principais desafios para manter os rios brasileiros vivos diante do avanço da urbanização, da mineração e do agronegócio intensivo?

Esse fenômeno mostrado pelo MapBiomas está relacionado com o desaparecimento da vegetação. Porque, quando a gente não tem mais vegetação, e chove muito, o solo não consegue absorver a água — ela escorre rapidamente. A água vai correndo para o rio e vai embora. Quando você tem muita vegetação, o solo que está embaixo dela absorve a água na hora da chuva forte e vai soltando devagarzinho, mantendo o rio com uma área muito maior do que quando a vegetação já foi retirada. Esse é um dado que a ciência conhece muito bem.

Além disso, em boa parte de Minas Gerais — praticamente todo o estado — os eventos climáticos extremos são mais de seca, com diminuição das chuvas. Isso explica o que está acontecendo em várias partes do Centro-Oeste, Sudeste e boa parte da Amazônia: uma queda do volume de chuvas. Então, essa combinação — menos chuva e menos vegetação — é o motivo da redução da área coberta por água nas bacias da região.

E aí temos um enorme desafio: restaurar as matas ciliares em todos os rios onde elas foram desmatadas. Isso foi um erro histórico do Brasil. As matas ciliares evoluíram ao longo de milhões de anos e são fundamentais para a hidrologia dos rios e para a biodiversidade. E não é só restaurar a mata ciliar, mas também restaurar toda a vegetação muito próxima aos rios. Esse é um desafio para todos nós, aqui no Brasil. Precisamos mover o Brasil para uma agricultura e pecuária mais sustentáveis — o que a gente chama de regenerativas. Elas são muito mais produtivas, usam áreas menores, são mais resilientes aos eventos extremos.

Muito se fala em ponto de não retorno da Amazônia. Há também um risco de ponto de colapso para outros biomas e bacias hidrográficas do país?

A ciência já mostra um enorme risco de pontos de não retorno para quatro biomas brasileiros. No caso da Amazônia — que é o bioma que eu estudo há mais tempo —, se a temperatura global passar de 2°C, e o desmatamento continuar acima de 20%, estaremos muito próximos, ou até além, do ponto de não retorno. Isso significaria perder uma grande parte da floresta, que se transformaria em um ecossistema degradado, com dossel aberto, perdendo a maior biodiversidade do mundo. E, em 30 a 50 anos, entre 50% e 70% da Amazônia poderia se autodegradar. E, com isso, lançaríamos mais de 250 bilhões de toneladas de gás carbônico na atmosfera — o que tornaria impossível manter a temperatura abaixo de 1,5°C.

Recentemente, colegas da Universidade de Brasília, como a professora Mercedes Bustamante, mostraram que o Cerrado também está muito perto desse ponto. A estação seca está ficando mais longa, o desmatamento tem feito o bioma evaporar e transpirar bem menos água, com chuvas diminuindo e a temperatura aumentando muito. E o que já se observou ali, na transição com a Caatinga — no oeste da Bahia e sul do Maranhão — é que a Caatinga já avançou cerca de 230 mil km² para dentro do Cerrado. A Caatinga também está à beira do ponto de não retorno. O norte da Bahia já está virando um semideserto. Isso é resultado da interação entre o aquecimento global e o desmatamento. Ali, quase 50% da Caatinga já foi

desmatada. No Cerrado, esse número chega a 52%. O Pantanal também está sofrendo. Mais de 40% da área alagada do Pantanal já diminuiu. Isso acontece tanto pelo desmatamento da Amazônia — que reduz as chuvas — quanto pelo desmatamento do próprio Cerrado, além das secas mais intensas provocadas pelo aquecimento global.

A Mata Atlântica é o bioma mais desmatado, com mais de 80% de perda, mas os sistemas de chuva ali ainda não mudaram totalmente. E o Pampa, no Sul, até tem registrado aumento das chuvas. Veja bem: o Brasil tem seis biomas. E quatro deles — Amazônia, Cerrado, Caatinga e Pantanal — estão à beira do ponto de não retorno.

O senhor é um dos idealizadores do projeto Terceira Via/Amazônia 4.0, de desenvolvimento sustentável para a região. Que lições dessa iniciativa podem ser aplicadas em outros territórios do país, como as bacias do Cerrado e do Sudeste brasileiro?

O Brasil tem a maior biodiversidade do mundo — entre 18% e 20% de todas as espécies conhecidas de plantas e animais estão aqui. A Amazônia tem a maior biodiversidade do planeta. O Cerrado é a savana tropical com a maior biodiversidade entre todas as savanas do mundo. A Caatinga só existe no Brasil e tem uma biodiversidade enorme, própria desse tipo de vegetação de estepe savânica. O Pampa também tem uma biodiversidade muito rica nesse tipo de ecossistema. E a Mata Atlântica, embora seja muito menor que a Amazônia — cerca de um quinto do tamanho —, em alguns lugares, como o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo, um único hectare pode ter de 400 a 450 espécies de árvores, o maior número do mundo.

E o objetivo da Amazônia 4.0 é este: agregar valor aos produtos da floresta, industrializar de forma sustentável, criar uma bioeconomia baseada na sociobiodiversidade.

E isso não precisa ficar restrito à Amazônia. Podemos ter Mata Atlântica 4.0, Cerrado 4.0, Caatinga 4.0, Pantanal 4.0, Pampa 4.0...

Aumento na frequência e intensidade de chuvas extremas é um dos sinais mais evidentes da crise climática que afeta bacias hidrográficas em todo o país. Luiz

Como a ciência pode ajudar gestores públicos e Comitês de Bacias Hidrográficas a tomar decisões mais acertadas frente à emergência climática?

A ciência pode ajudar muito. O Brasil tem a maior biodiversidade do mundo — e o potencial econômico dessa biodiversidade é gigantesco. Mas, na prática, ela representa quase nada na economia brasileira. Nós fizemos um estudo que mostra que todos os produtos da nossa biodiversidade representam apenas 0,4% do PIB [Produto Interno Bruto] do Brasil. Enquanto isso, só a produção de carne bovina representa 6% do PIB. Ou seja, um único produto, que é o principal vetor de desmatamento dos biomas, tem um peso 15 a 20 vezes maior na economia do que todos os produtos da biodiversidade juntos.

E é aí que entra a importância da ciência: levar tecnologia, inovação, a chamada Indústria 4.0, e combinar isso com o conhecimento tradicional dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outras comunidades locais. A ciência moderna, junto com o conhecimento tradicional, pode gerar desenvolvimento local com preservação. Ou seja, o potencial da bioeconomia da sociobiodiversidade é enorme. O que ainda falta é escala. O Brasil, que tem a maior biodiversidade do planeta, precisa fazer com que essa riqueza seja, de fato, parte central da sua economia. Essa mudança pode melhorar a vida de dezenas de milhões de brasileiros, proteger os biomas, manter a vegetação em pé e garantir o funcionamento dos sistemas hidrográficos. Esse é o nosso grande desafio: trazer a ciência moderna, unir aos saberes tradicionais e dar escala a essa nova bioeconomia.

Quais políticas públicas o senhor considera urgentes para assegurar a resiliência hídrica em regiões fortemente impactadas por mudanças climáticas, como o semiárido mineiro?

Nós precisamos mudar muita coisa. Se continuarmos com os desmatamentos e, principalmente, se a temperatura do planeta até 2050 chegar a 2,5°C mais quente, os estudos indicam que até mesmo a região da bacia do Rio das Velhas poderá se tornar semideserto. Essas são as batalhas que temos que enfrentar diante dessa emergência. Temos uma responsabilidade enorme de combater a crise climática em todos os nossos biomas — e também de enfrentar o aquecimento global.

Porque, se a gente apenas parar de desmatar e restaurar as áreas degradadas, mas o aquecimento global continuar avançando e chegar a 2,5°C, corremos o risco de perder inúmeros sistemas hidrográficos. Num cenário como esse, grande parte da Caatinga pode virar semideserto, grande parte da Amazônia pode se transformar em uma savana degradada, e grande parte do Cerrado pode virar Caatinga. Isso significaria uma mudança profunda nos sistemas hidrográficos de praticamente todo o Brasil. Portanto, não podemos ir nessa direção de forma alguma.

Que mensagem o senhor deixaria para as comunidades que vivem e cuidam das águas do Rio das Velhas? Qual o papel delas no enfrentamento da crise climática global?

Todas as populações tradicionais que vivem nessas regiões — povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas — sempre souberam conviver de forma harmoniosa com os biomas. Os indígenas, por exemplo, estão na América do Sul há mais de 15 mil anos e sempre conseguiram se adaptar, conservar a biodiversidade e manter os ecossistemas funcionando, inclusive os sistemas hídricos. Essas comunidades mantiveram os rios vivos, a biodiversidade aquática preservada e nunca causaram extinções de espécies. Sempre souberam conviver com os ciclos da natureza, pescando, plantando e colhendo de forma sustentável.

Então, a mensagem que eu deixo é: precisamos aprender com essas comunidades. Elas devem receber nosso apoio e também o apoio das políticas públicas. Devem ser respeitadas e reconhecidas como guardiãs dos nossos rios e biomas. Ao mesmo tempo, precisamos unir esforços para enfrentar essa super emergência climática. E isso passa por valorizar quem sempre cuidou da água e da terra. Essas populações têm um papel fundamental no enfrentamento da crise climática global — não apenas pelo que fazem hoje, mas pelo que sempre fizeram, há milhares de anos.

Carlos Nobre defende ações urgentes para restaurar biomas e garantir a resiliência hídrica do Brasil.
Mais recente enchente de grandes proporções no Rio das Velhas foi em 2022. Em destaque, o município de Jequitibá.
Fernando Donasci
Léo Boi
A escassez de chuvas e a perda de vegetação nativa têm secado rios em diferentes regiões do país, como o Córrego da Mariquita, no Baixo Velhas.
Léo Boi

Cultura e turismo se unem para impulsionar a cadeia produtiva da jabuticaba em distrito de Ouro Preto, que já conta com Indicação Geográfica e uma das festas mais tradicionais da região

Texto: Mariana Martins / Fotos: João Alves

Em Cachoeira do Campo, distrito de Ouro Preto, a jabuticaba está no centro de um grande movimento de transformação econômica, cultural e ambiental. A fruta é protagonista do Arranjo Produtivo Local (APL) batizado de “Jabuticaba de Cachoeira do Campo – A Ouro Preto de Minas”, que tem mobilizado produtores, instituições públicas e a sociedade para fortalecer a cadeia produtiva da fruta.

Com apoio de diversas instituições – dentre elas o Fundo de Desenvolvimento Econômico de Ouro Preto (FUNDES), a Agência de Desenvolvimento Econômico e Social de Ouro Preto (ADOP), a Sumo da Terra, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Tecnologia, a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, a Secretaria Municipal de Agropecuária e o Lions Clube de Cachoeira do Campo – o projeto visa organizar e profissionalizar a produção de jabuticaba e seus derivados, como geleias, licores, vinagres e doces, integrando produtores em rede, incentivando o turismo rural e gerando oportunidades sustentáveis para a comunidade.

Entre os muitos rostos por trás dessa transformação está o da produtora Rosangela Silva Guimarães, uma das referências locais quando o assunto é jabuticaba. Com uma produção totalmente artesanal e baseada nas frutas de seu próprio quintal — onde cultiva dez jabuticabeiras centenárias — Rosangela conta que a relação com a fruta vem de gerações. “Faço meus produtos desde sempre, mas antes era do jeito que aprendi com a minha mãe e minha avó. Não tínhamos essa visão de negócio”, relata.

A virada começou com uma oficina promovida pela chef Milsane Sebastião, de Sabará, realizada em Cachoeira do Campo. “A partir dessa oficina, além da diversificação de produtos, aprendemos também a tomar para a gente o que é nosso. Ganhamos a sensação de pertencimento”, afirma Rosangela.

Ela destaca que mais de 50 pessoas participaram das capacitações e, a partir disso, muitos passaram a encarar sua produção com uma nova perspectiva: como um empreendimento com potencial real de crescimento. Hoje, ela é reconhecida na região, atraindo turistas interessados em seus licores, doces e compotas. “Não tem como separar a história de Cachoeira do Campo da história da jabuticaba. Sempre que recebo visitantes, conto a minha história, a da minha família, da cidade, do estado e do país. Está tudo interligado”, diz. Rosangela ainda lembra com orgulho que, antigamente, Sabará comprava jabuticaba produzida em Cachoeira do Campo.

Rosangela Guimarães resgatou receitas de família e transformou produção artesanal em fonte de renda e fortalecimento cultural.

A prefeitura tem atuado diretamente no processo de consolidação do APL, como explica o secretário de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Tecnologia de Ouro Preto, Felipe Guerra: “A consolidação de um Arranjo Produtivo Local da Jabuticaba como política pública de desenvolvimento territorial envolve um conjunto articulado de ações estratégicas, institucionais e operacionais. A prefeitura participa do grupo gestor do projeto e, com base nos dados diagnósticos e no mapeamento dos produtores, pretende colaborar com legislações específicas e ações de fortalecimento da cadeia.”

Segundo Guerra, o projeto tem papel estratégico na política municipal. “Ele é fundamental para impulsionar a economia local, ao valorizar a jabuticaba — fruta historicamente ligada a Cachoeira do Campo. Por meio dessa iniciativa, buscamos promover a diversificação econômica, incentivando a agricultura familiar, o que irá gerar empregos e renda, além de fortalecer a identidade cultural e turística do município.”

Entre janeiro e abril de 2025, foi realizada uma pesquisa que revelou um panorama inédito da cadeia produtiva da jabuticaba em Ouro Preto, abordando desde o cultivo da fruta in natura até a produção e comercialização de seus derivados. Com base em entrevistas com 201 produtores da fruta e 57 de derivados, o estudo apontou que a atividade é majoritariamente familiar, feita em pequena escala e enraizada no território local, mas ainda marcada pela informalidade e baixa renda. O levantamento também destacou o potencial dos produtos derivados, cuja produção é liderada em grande parte por mulheres, com maior valor agregado e diversidade de itens, como licores, doces e cosméticos — além do forte valor simbólico e cultural da jabuticaba para a região, que serviu de base para a criação do projeto.

Saulo Filardi, da Associação Sumo da Terra – Ideias Globais, Ações Locais, entidade responsável pela execução das ações do projeto ‘A Ouro Preto de Minas’, explica que um dos principais desafios do projeto está no fortalecimento da economia criativa. Para ele, o trabalho com doceiros, artesãos e pequenos produtores locais exige uma mudança de mentalidade sobre o valor da jabuticaba no mercado. “Nosso maior desafio é justamente fazer com que as pessoas envolvidas na cadeia produtiva da fruta compreendam sua importância, o potencial econômico que ela tem e como isso pode ser transformado em oportunidades reais”, afirma.

Esse processo, segundo Saulo, é gradual e demanda o envolvimento de toda a comunidade. “Estamos criando, aos poucos, uma cultura de pertencimento, de valorização e de busca por qualidade, o que exige equilíbrio e diálogo com todos os atores locais.” Ele ressalta que o projeto contempla uma ampla gama de produtos, dos alimentícios ao artesanato, todos vinculados à identidade da jabuticaba de Cachoeira do Campo, cuja presença sempre foi abundante, mas com retorno financeiro ainda limitado. “O grande desafio é transformar essa riqueza simbólica e natural em desenvolvimento concreto para a região.”

Na mesma linha, o secretário Felipe Guerra destaca que o projeto tem papel estratégico no fortalecimento da economia local. “Ao valorizar a jabuticaba como um produto com potencial de mercado, o projeto estimula a produção agrícola sustentável, cria novas oportunidades de negócios artesanais e turísticos, e atrai visitantes interessados na cultura local, no turismo de experiência e na gastronomia”, afirma. “Isso contribui para a ampliação da renda dos produtores rurais e para a geração de empregos diretos e indiretos.”

Identidade geográfica e valorização cultural

O projeto, que já conquistou a Indicação Geográfica (IG) da jabuticaba de Cachoeira do Campo — selo concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) que reconhece produtos cuja qualidade está diretamente ligada ao seu território de origem. Com essa certificação, a jabuticaba se consolidará como símbolo regional, ganhando mais visibilidade, valor agregado e potencial turístico.

Esse movimento se manifesta na cultura local por meio da Festa da Jabuticaba de Cachoeira do Campo, realizada todos os anos desde 1992. Promovida pelo Lions Clube local, a festa é um dos eventos mais tradicionais do distrito e simboliza o orgulho da comunidade em torno da fruta. A programação gratuita, que se estende por três dias, combina gastronomia típica, artesanato, música, atividades culturais e ações de valorização da jabuticaba como patrimônio imaterial.

Oficinas e capacitação

Com foco na qualidade, sustentabilidade e valorização da cultura local, o projeto “A Ouro Preto de Minas” já promoveu diversas oficinas práticas, como o plantio de mudas e a produção de kombucha com jabuticaba. Além das capacitações, o projeto também está mapeando as jabuticabeiras da região para criar um banco de dados estratégico e pretende cadastrar até 500 produtores. A partir desse cadastro, os participantes passam a ter acesso a treinamentos, inovações tecnológicas e apoio para comercialização dos produtos.

Carlos Eduardo da Silva, produtor de jabuticaba há mais de 20 anos, foi um dos primeiros a se inscrever no projeto. Ele conta que, desde então, percebeu um aumento expressivo no interesse das pessoas não apenas pela fruta in natura, mas também pelos seus derivados. “Com a jabuticaba, produzo licores, geleias e outros produtos. Agora, com a procura crescendo, pretendo melhorar meu espaço de produção, investir em novos equipamentos e, principalmente, compartilhar meu conhecimento com outras pessoas”, afirma o produtor, que já vislumbra um futuro mais promissor para a cadeia produtiva da fruta na região.

Para Saulo Filardi, o maior desafio é valorizar a jabuticaba como símbolo cultural e motor do desenvolvimento local, conectando saberes tradicionais à inovação.

Água e desenvolvimento caminham juntos

Nos últimos anos, o CBH Rio das Velhas tem investido em projetos de revitalização no Rio Maracujá, fundamental para o abastecimento de comunidades rurais e para a agricultura familiar em Cachoeira do Campo. Um deles, o Programa de Conservação Ambiental e Produção de Água, visa assegurar a qualidade e a disponibilidade da água — elemento essencial não só para a vida cotidiana, mas para o próprio cultivo da jabuticaba.

Mais recentemente, foi assinado com o Ministério Público um importante termo de referência. O projeto, intitulado “Elaboração de Projetos de Conservação – Rio Maracujá”, será financiado por meio de medida compensatória ambiental, no valor de R$ 885 mil e terá duração de nove meses. A iniciativa busca enfrentar os graves problemas de erosão e assoreamento causados por desmatamento e manejo inadequado do solo, que comprometem diretamente a agricultura local e a qualidade da água.

Doces, licores e compotas mostram o potencial dos derivados da jabuticaba para impulsionar a economia familiar e valorizar a cultura de Cachoeira do Campo.

Você sabia?

A busca pelo selo de Indicação Geográfica (IG), que reconhece oficialmente a origem e a qualidade de produtos ligados a territórios específicos, vem ganhando força em Minas Gerais. Seguindo os passos da jabuticaba de Cachoeira do Campo, outros produtos típicos da região estão em processo de reconhecimento:

• Pimenta Biquinho de Bento Rodrigues

• Pastel de Angu de Itabirito

• Pedra-Sabão de Santa Rita de Ouro Preto

• Goiabada de São Bartolomeu

Unidades Territoriais

Entre memórias literárias e desafios hídricos

UTE Rio Bicudo, no Baixo Velhas, é região de contrastes: rica em história e cultura, mas desafiada pela escassez hídrica e pela pressão sobre seus recursos naturais

Texto: Luiza Baggio

O sertão entre luz e sombra: arco-íris toca o Morro da Garça, símbolo de beleza e resistência no coração do Baixo Velhas.

Entre as veredas do sertão mineiro, onde o tempo parece andar com passos próprios, estão os municípios de Corinto e Morro da Garça — guardiões da paisagem marcada pela aridez e resistência do povo. As duas cidades, localizadas na porção centro-norte de Minas Gerais, compõem a Unidade Territorial Estratégica (UTE) Rio Bicudo, uma sub-bacia do Baixo Rio das Velhas com grande relevância ambiental, histórica e cultural.

Morro da Garça tem suas origens no século XVIII, com a construção da Capela de Nossa Senhora das Maravilhas, em 1720, em torno da qual o povoado começou a se formar. O município é uma joia quase escondida, com sua icônica elevação rochosa de onde se avista o Cerrado em toda sua vastidão.

Lucas Nishimoto
Léo Boi
Vista urbana de Morro da Garça: cidade marcada por raízes sertanejas, cultura tradicional e os desafios do semiárido mineiro.

Unidade Territorial Rio Bicudo

Mapa de localização

Legenda

Rios e Córregos

Limites Bacia do Velhas

Corinto

Morro da Graça

Já Corinto, fundada em 1923, cresceu com os trilhos da antiga Estrada de Ferro Central do Brasil e carrega em seu território os marcos do ciclo do ouro e da agricultura tradicional. A região, conhecida como “Paragem do Curralinho”, era ponto de passagem para tropeiros que transportavam gado da Bahia para as Minas. Situada na terra entre os Rios São Francisco e das Velhas, Corinto se consolidou como um ponto estratégico devido à sua topografia e pastagens ideais para o descanso das tropas. O arraial que ali se formou, próximo aos córregos Curralinho, Capão da Cinza e Pindaíba, cresceu com a chegada de colonizadores baianos e paulistas, que trouxeram a pecuária e a agricultura de subsistência

O cenário e o espírito desses lugares ecoam nas palavras de João Guimarães Rosa, um dos maiores escritores brasileiros, cuja obra reflete o sertão mineiro, e que atravessou essas terras em sua jornada pelo sertão. O escritor eternizou paisagens e personagens em obras como “Grande Sertão: Veredas”. O próprio autor declarou ter vivido ali experiências que inspiraram a travessia literária de Riobaldo e Diadorim. Em um dos contos do livro “Corpo de Baile”, há a icônica frase: “Lá estava o Morro da Garça: solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide.”.

Morro da Graça
Corinto
Corinto, nascida nos trilhos da antiga ferrovia, guarda em seu território a memória dos tropeiros e a luta pela água.
Bernardo
MAscarenhas

Entre bordados, fé e simplicidade, o cotidiano de Morro da Garça revela a alma sertaneja e a herança viva de um povo que transforma sua paisagem em poesia.

Circuito sob a aura de Rosa

O Circuito Turístico Guimarães Rosa nasceu de experiências realizadas por amantes da literatura que percorrem o sertão de Minas para conhecer as paisagens e os lugares onde se passam as histórias do autor. Atualmente, fazem parte do circuito os municípios de Araçaí, Buritizeiro, Corinto, Curvelo, Felixlândia, Inimutaba, Morro da Garça, Pirapora e Presidente Juscelino; integra também o roteiro a Basílica de São Geraldo, em Curvelo.

Com cerca de 290 km, o Caminho da Boiada percorrido por Rosa liga as cidades de Três Marias e Araçaí, passando por Corinto, Morro da Garça, Curvelo e Cordisburgo. Já o roteiro Travessia da Fé liga a Basílica de São Geraldo ao Santuário de Nossa Senhora da Piedade, em Felixlândia, dois ícones religiosos da região e do estado.

Outro roteiro obrigatório para os turistas que chegam a Morro da Garça é a tradicional subida ao morrão. Lá o recomendado é apreciar o nascer do sol do seu mirante. Todo o esforço da subida é recompensado com um belo espetáculo. A visão em 360º garante um belo panorama do sertão, podendo-se avistar desde o cerrado que ainda sobrevive, assim como as vastas pastagens e imensas áreas de monocultura de eucalipto.

Do morrão é possível ver boa parte de um sertão sempre em movimento, em transformação, onde os diversos usos da terra entram em conflito e se convergem formando um mosaico de paisagens, símbolos e signos. De lá se vê, também, a sombra do morrão formando uma pirâmide, fazendo jus à referência dada por Guimarães Rosa.

O Roteiro se inicia na Casa da Cultura do Sertão e pode ser feito de carro até o começo da subida do morrão, onde há uma porteira e se inicia a caminhada. São 7,3 km, dos quais 5 km são por estradas de terra em boas condições de tráfego e 2,3 km são de caminhada até o topo do morrão.

Paróquia Nossa Senhora da Conceição, em Morro da Garça.
Michelle Parron
Michelle Parron
Michelle Parron
Lucas Nishimoto
Lucas Nishimoto

O rio que seca todos os anos

A beleza do sertão também esconde uma dura realidade: a bacia do Rio Bicudo enfrenta uma crise hídrica recorrente, agravada por fatores naturais e humanos. Muitos dos cursos d’água da região, incluindo o Rio Bicudo e seu afluente, o Córrego Canjica, são intermitentes, secando completamente durante a estiagem. O Córrego Canjica, conhecido por sua resistência, teve sua primeira seca registrada em 2015, simbolizando a gravidade da situação. O Rio Bicudo, mesmo em trechos de maior volume, foi reduzido a um filete de água, evidenciando o impacto da seca e da exploração humana.

Leandro Vaz Pereira é natural de Corinto. Nascido e criado às margens do Rio Bicudo, de onde seus familiares tiraram por gerações o sustento da família, ele explica que um dos problemas do território é que a demanda excede a oferta de água. “No período de estiagem, o Bicudo se transforma em rio intermitente, fica ‘cortado’, desaparecendo temporariamente em alguns trechos. Essa situação é agravada pelo uso intensivo da água para irrigação e abastecimento humano, muitas vezes sem controle adequado”, diz.

A escassez é intensificada por práticas como captações irregulares para irrigação, perfuração descontrolada de poços artesianos e desmatamento, que comprometem o lençol freático e a mata ciliar. “Processos erosivos, causados por atividades minerárias, pecuária e queimadas, também contribuem para o assoreamento dos rios, reduzindo a capacidade de retenção de água”, acrescenta Leandro, que é conselheiro do CBH Rio das Velhas há anos, hoje representando o CORESAB (Consórcio Regional Multifinalitário de Saneamento Básico Central de Minas).

Outro fator crítico apontado por ele é a gestão das outorgas de água. Em 2016, um estudo contratado pelo CBH Rio das Velhas analisou os usos de recursos hídricos sobre as vazões disponíveis em toda a região e apontou que a demanda concedida pelo estado excede a oferta de água em mais de 500%.

Por conta disso, em 2018, o Comitê solicitou ao IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas) a declaração de conflito pelo uso da água na UTE Rio Bicudo. A declaração de área de conflito é utilizada em bacias nas quais a disponibilidade hídrica é menor que a demanda dos usuários. No entanto, o IGAM não deferiu o pedido do CBH Rio das Velhas.

Leandro Vaz Pereira, conselheiro do CBH Rio das Velhas, destaca os conflitos pelo uso dos recursos hídricos na UTE.
Trechos secos de cursos d’água na Bacia do Rio Bicudo revelam os impactos da degradação ambiental e do uso desordenado da água na região.
Léo Boi
Bernardo Mascarenhas João Alves

Um futuro sustentável

Em meio a esse cenário, o Subcomitê Rio Bicudo, criado em março de 2011 como instância descentralizada do CBH Rio das Velhas, tem desempenhado um papel fundamental na mobilização da sociedade local e na busca por soluções sustentáveis. Desde 2024, o Subcomitê Rio Bicudo abrange também parte da bacia vizinha do Ribeirão Picão. O colegiado atua em ações de educação ambiental, fiscalização participativa e fortalecimento da governança hídrica.

Com investimentos que ultrapassam R$ 2,4 milhões, o CBH Rio das Velhas elaborou seis projetos na Bacia do Rio Bicudo com o objetivo de fortalecer a resiliência hídrica, promover a inclusão das comunidades locais na gestão das águas e recuperar áreas degradadas, assegurando o abastecimento e a qualidade ambiental para as futuras gerações.

Luiz Felippe Pedersolli é morador da região há anos e atual coordenador da sociedade civil no Subcomitê Rio Bicudo. Ele comenta que um dos projetos mais emblemáticos é a construção de barraginhas, pequenas bacias de contenção que reduzem a erosão, aumentam a infiltração de água no solo e fortalecem o lençol freático. “Em 2015, máquinas já operavam em áreas rurais de Morro da Garça e Corinto, beneficiando a agricultura familiar ao melhorar a disponibilidade hídrica e a qualidade do solo”, explica.

Outro projeto relevante, iniciado em 2013, foi o Levantamento Ambiental e Plano de Ação para a Bacia do Rio Bicudo. “O projeto mapeou áreas degradadas e envolveu comunidades locais, produtores rurais e gestores públicos na elaboração de ações para recuperação ambiental”, lembra Luiz.

Ações para a melhoria do saneamento básico também foram realizadas, como a elaboração do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) de Corinto e Morro da Garça no ano de 2014. O CBH Rio das Velhas também realizou, em 2016, o projeto da rede de distribuição de Água do Jacarandá e Buriti Velho.

Para Luiz Felippe, as ações do Subcomitê Rio Bicudo e do CBH Rio das Velhas demonstram um compromisso com a gestão participativa e a revitalização ambiental. “Por meio de projetos que aliam conservação, educação e engajamento comunitário, a bacia do Rio Bicudo busca um futuro em que a água, tão celebrada por Guimarães Rosa em suas narrativas, volte a correr com abundância e qualidade, sustentando a vida e a identidade do sertão mineiro”, finalizou.

Luiz Felippe Pedersolli lidera o Subcomitê Rio Bicudo na missão de garantir mais e melhores águas para a região.
Miguel
Aun
Encontro do Rio Bicudo com o Rio das Velhas , em Beltrão, distrito de Corinto. Mesmo com desafios, Rio Bicudo ainda preserva trechos de beleza e vida, sendo foco de projetos que almejam restaurar seu fluxo e garantir água para as próximas gerações.

Turismo 65 km de Natureza e Esporte

Redescobrindo o Rio das Velhas de Ouro Preto a Acuruí

Por Luciana Machado, jornalista, produtora de Esporte da TV Globo e triatleta

Cachoeira de São Bartolomeu, distrito de Ouro Preto

Produtora Luciana Machado (dir.) e repórter Giovanna Pires (esq.) com moradora local durante a produção da reportagem.

“Felicidade se acha é em horinhas de descuido”, escreveu certa vez o célebre escritor João Guimarães Rosa. O autor mineiro sabia das coisas. Por acaso ou “descuido”, me deparei com uma felicidade chamada Rio das Velhas. Um desconhecido que permeia o imaginário da maioria dos belo-horizontinos como um rio poluído, cujas águas cristalinas tive o prazer de conhecer em Acuruí devido ao Triathlon, esporte com três modalidades: natação, ciclismo e corrida.

O esporte que me permitiu mergulhar nas águas do Velhas me levou à descoberta de outras práticas esportivas ao longo de suas margens e de seu entorno. Essas descobertas se transformaram transformaram em uma reportagem em dois capítulos para o Esporte Espetacular, da TV Globo, exibidas em 06 e 13 de abril de 2025. Um trabalho feito a várias mãos: Giovanna Pires (repórter), Lucas Campos (repórter cinematográfico), Jackson Lobo (assistente), Rafael Farias (editor de texto), Pedro Santos (editor de imagem) e eu, Luciana Machado (produtora).

“Criei o roteiro em parceria com o CBH Rio das Velhas e apoiadores locais, que nos conduziram por caminhos, histórias e informações capazes de revelar a beleza do rio além do conhecimento popular.”

Luciana Machado

Águas cristalinas no Parque das Andorinhas, berço do Rio das Velhas, onde brota a vida que sustenta boa parte da Grande BH.

Equipe da TV Globo acompanha ciclista por estradas de terra que revelam o lado esportivo e natural do Rio das Velhas.

André Mapa, referência brasileira no trail run, transforma as trilhas do Velhas em cenário de superação e conexão com a natureza.

Onde brota vida e movimento

Essa deliciosa aventura teve início a cerca de 60 km de Acuruí, onde começa o percurso de um dos rios mais importantes de Minas Gerais. “Cerca de 60% da Região Metropolitana de Belo Horizonte [RMBH] é abastecida pelo sistema Rio das Velhas. Ou seja, há uma necessidade premente de cuidar desse rio para garantir segurança hídrica para milhões de pessoas”, esclarece Poliana Valgas, presidenta do CBH Rio das Velhas.

É em Ouro Preto, dentro do Parque Natural Municipal das Andorinhas, numa área verde de 557 hectares de Cerrado e Mata Atlântica, onde brotam as nascentes do Velhas. A água gelada e cristalina vai encontrando-se com outros rios, formando piscinas naturais e cachoeiras que recebem cerca de 35 mil visitantes por ano. As cachoeiras das Andorinhas, dos Pelados e Véu das Noivas também refrescam o corpo e a alma de quem utiliza o Parque para a prática de esportes como trail run, mountain bike, escaladas (esportiva e Boulder) e slackline.

Pelas trilhas e, principalmente, na pista de XCO (Cross-Country Olímpico) de 5 km, o ciclista ouro-pretano Samuel Marotta, 30 anos, se preparou para tornar-se campeão brasileiro de Mountain Bike, em 2022. Do Mirante do Vermelhão, ponto mais alto do parque com cerca de 1400 m de altitude, Samuel desce em alta velocidade por terrenos técnicos e irregulares.

O esporte está no sangue. Samuel é sobrinho de André Mapa, 43 anos, artista de Ouro Preto e referência no trail run, a corrida de montanha. Foi campeão sul-americano no Skyrunning em 2023 e o melhor skyrunner brasileiro de 2024. Mas nem sempre foi assim. Foi na pandemia da Covid-19 que André transformou o Parque no quintal de casa, começou a correr e descobriu que nasceu para ser corredor de montanha.

Uma dessas trilhas nos leva à Pedra Branca, ponto de highline a cerca de 20 m do chão e de escalada esportiva. O ouro-pretano Fábio Melo, 39 anos, é guia de montanha do Exército Brasileiro. Muitas vezes, pedala ou corre pelo Parque, curte uma cachoeira e espera anoitecer para fazer o que mais gosta: o Boulder, escalada em formações rochosas sem uso de material, com o apoio de colchões para amortecer as quedas. O local é uma antiga pedreira e a escalada ajudou a acabar com a exploração de pedras, trazendo mais conscientização ambiental aos moradores da região.

Ane Souza
Ane Souza
Ane Souza

Entre o tacho e o remo

As águas do Velhas deixam o Parque Municipal Natural das Andorinhas, passam pela comunidade de Catarina Mendes e chegam ao distrito de São Bartolomeu – um percurso que pode ser feito de bicicleta, margeando o Velhas. O povoado de São Bartolomeu, fundado no final do século XVII pelos bandeirantes em busca do ouro, possui uma das igrejas mais antigas de Minas Gerais: a Matriz de São Bartolomeu, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1960.

A igreja fica na rua principal do distrito, onde mora uma família que está há séculos no povoado e que vive de fazer doces. A família de Serma Fortes, 76 anos, aprendeu a arte dos doces artesanais em tacho de cobre, uma tradição que atravessou gerações. O carro-chefe é a goiabada cascão, mas também tem geleias de frutas, doce de leite, raspas de laranja com chocolate... Atualmente, quem produz os doces é o neto Filipe Fortes. É dele a força de mexer a colher de pau e deixar o doce no ponto. “Quando meus avós não estavam dando conta de produzir mais a quantidade de doce que a gente sempre produziu, minha mãe veio para cá para ajudá-los e eu vim morar aqui também. E hoje já tem cinco anos que eu produzo doce aqui com eles”, contou Filipe.

Não é à toa que Guimarães Rosa dizia que “perto de muita água, tudo é feliz”. A poucos metros dali, os moradores aproveitam para descansar às margens do rio. Para os turistas mais aventureiros, as águas do Velhas são uma opção de lazer e esporte. Outro neto de Serma, o Luiz Fortes, é instrutor de canoagem e criou um passeio de caiaque. O leito raso permite que os turistas aprendam e se divirtam sem maiores riscos. “É um passeio ideal para quem está querendo ter a primeira prática no remo. Um passeio de contemplação da natureza, bem tranquilo, com águas rasas e cristalinas nesse trecho todo”, explicou Luiz.

Águas que relaxam, revigoram e conectam à natureza. A região possui mais de 40 cachoeiras e é perfeita para trekking, trail run e mountain bike. Uma das cachoeiras mais bonitas e fáceis de se chegar é a de São Bartolomeu, dentro da Floresta Estadual do Uaimií. São apenas 5 km saindo da rua principal do distrito, perto da igreja Matriz, até a cachoeira. É possível chegar a pé, de bicicleta ou carro para admirar a queda de 47 m de altura.

São Bartolomeu: distrito de Ouro Preto onde tradições centenárias convivem com as novas formas de vivenciar o rio, como o passeio de caiaque em águas calmas e cristalinas.

Trilhas ecológicas revelam a beleza natural e os desafios da preservação do rio.

Três modalidades, um só rio

A Floresta faz divisa com o Parque Nacional da Serra do Gandarela, criado em 2014 como importante área de conservação ambiental. Possui 31 hectares que envolvem oito municípios: Ouro Preto, Mariana, Santa Bárbara, Caeté, Rio Acima, Raposos, Nova Lima e Itabirito.

Uma das entradas do Gandarela é em Acuruí, um pequeno paraíso a quase 80 km da capital mineira, com apenas 500 habitantes, que me encantou com as inúmeras possibilidades de sentir a natureza através da prática esportiva.

Fui participar de um treino de Triathlon no CT Arjon, centro de treinamento gratuito específico para triatletas, na sub-bacia do Rio Maracujá. De propriedade do empresário João Paulo Cavalcanti, natural de Itabirito, o CT é uma forma de apoiar o esporte e beneficiar a comunidade.

No local, foi construída uma lagoa de cerca de 150 m de comprimento para os treinos de natação. O ciclismo é feito na estrada sem saída da Serra de Capanema (ITA-300) e a corrida passou a ser realizada numa estrada de terra próxima, margeada pelo Rio das Velhas.

Em frente à lagoa, do outro lado da estrada, ficam os banheiros, o café, a área de transição dos esportes e o estacionamento dos carros. Minha maior surpresa, no meu primeiro dia no CT Arjon, foi vislumbrar, ao fundo do terreno, o Rio das Velhas.

Encantei-me com aquele lugar antes mesmo de começar minha experiência esportiva. O Triathlon foi a motivação para desbravar suas serras, trilhas e cachoeiras. Em 2024, durante o Festival das Montanhas e Águas de Minas, conheci um projeto da região, que oferece aulas de caiaque, remo, canoa, stand-up paddle e educação ambiental. Andei de caiaque com meus filhos Ian e Isis, então com sete e cinco anos de idade, e ainda aprendemos sobre a natureza da região. No complexo Catana da Serra, eles viram e entraram em uma cachoeira pela primeira vez. O mais divertido foi brincar na beira do Rio das Velhas, nos fundos do CT Arjon, onde o esporte, a natureza e a vida se conectam!

Treinar ali foi maravilhoso! O local virou ponto de encontro de diversas assessorias esportivas, onde os triatletas amadores se juntam a atletas de elite, como o belo-horizontino Thiago Vinhal, que já fez mais de 30 provas de Ironman: “O CTA é o nosso lugar para treinar, competir e se conectar com quem ama Triathlon”.

Fernando Piancastelli
Fernando Piancastelli
Fernando Piancastelli
Fernando Piancastelli
Estrada às margens do Rio das Velhas agora é local de treino e corridas
Lago do CT Arjon para treino de natação
Triatletas percorrem caminhos de terra e serras na região de Acuruí, distrito de Itabirito.
Mirante do Contrafortes do Espinhaço, na Serra do Gandarela, a 1320 m de altitude.

Onde a fazenda encontra o rio

O rio segue... e chega ao Recanto dos Búfalos, uma fazenda de agricultura familiar. Em 2021, a família de Fernanda Drumond, dona da propriedade, abriu as portas de casa para gerar renda e ajudar os pais na fazenda: “Hoje a gente recebe as visitas tanto para experimentar os derivados do leite de búfala, que nós produzimos, quanto para interagir com os animais”, explica Fernanda. É possível tomar um delicioso café da manhã ou degustar um almoço bem caseiro, andar de búfala e se aventurar pelo Rio das Velhas. De barco, stand-up paddle ou caiaque, são cerca de 3 km até chegar à Represa Rio de Pedras.

Construída em 1908 para fornecer energia elétrica à nova capital mineira, Belo Horizonte, hoje está assoreada e com a capacidade de geração de energia reduzida. “O processo erosivo é ampliado pela mineração. Toda a barragem, um dia, vai virar uma planície porque o rio carrega sedimentos. É preciso um trabalho muito grande em toda a bacia do Maracujá para evitar que isso ocorra”, explica Ronald Guerra, vice-presidente do CBH Rio das Velhas.

A areia e os resíduos se acumulam nas profundezas da represa e não são percebidos por quem passeia ou treina no local. Por isso, o cenário encanta e convida para um mergulho.

Ali na represa está localizado o Centro de Referência em Águas Abertas, espaço para aulas de natação, treinos e provas. Criado e desenvolvido por Alessandro Massaini, treinador de natação, que já ministrou dezenas de cursos de águas abertas com palestras e treinos práticos, além de etapas do Campeonato Brasileiro Master de Águas Abertas. “A beleza do lugar, o contato com a natureza e o próprio desafio de enfrentar adversidades como temperatura da água, corrente, profundidade, vento... tornam tão atraente a modalidade, que hoje em dia está crescendo absurdamente”, explica Massaini.

No Recanto dos Búfalos, produção familiar e turismo rural se encontram às margens do Rio das Velhas.

Barco à vela na Represa Rio de Pedras: lazer e contemplação em um dos trechos navegáveis do Velhas.
Nadadores treinam em águas abertas, desafiando limites em meio à paisagem natural do Velhas.

Um Velhas para viver

As últimas aventuras no trecho navegável do Rio das Velhas começam logo depois do encontro com a represa. É perfeito para a canoagem com mais velocidade e emoção. Foram cerca de três horas remando por quase oito quilômetros de pequenas corredeiras numa região com mata nativa, sem sinal de internet e apenas o som das águas, bichos e do vento nas folhagens. Tempo suficiente para admirar a paisagem, cansar os braços, levar dois tombos e me sentir realizada por essa experiência. O fim da aventura foi próximo à Ponte de Arame, antes do encontro com o Rio Itabirito. A partir dali, com a proximidade da Grande BH e o encontro com afluentes poluídos, a sujeira vai tomando conta e não é mais seguro navegar, muito menos mergulhar.

“Na cabeceira as águas têm mais qualidade. Em Ouro Preto, São Bartolomeu e Acuruí é possível nadar porque tem tratamento de esgoto. Mas o rio vai encontrando com as cidades e vai perdendo essa qualidade. Aos poucos, com certeza, quando chegar a Rio Acima, não dá para nadar, mas a gente quer. A meta é nadar, pescar e navegar no Rio das Velhas”, completa Ronald.

Segundo Poliana Valgas, “atualmente a parte mais poluída começa logo após a região de Raposos, Rio Acima, estendendo-se até a região de Baldim e Jequitibá. É o ponto em que a qualidade da água está mais baixa, exatamente pela quantidade de esgoto lançado nesse rio.”

Foram 65 km de um rio saudável percorridos durante quatro dias de descobertas. Um pequeno e privilegiado trecho dos 806 km de extensão do Rio das Velhas, que revela inúmeras possibilidades de esporte, lazer, aventura, conexão com a natureza, sustentabilidade e aprendizados sobre saúde e preservação ambiental.

O Rio das Velhas é tão importante para Minas Gerais, que Guimarães Rosa cita-o em sua principal obra “Grande Sertão: Veredas”, de 1956. O local onde o personagem principal, Riobaldo, descobre o segredo do amigo Diadorim é na foz do Velhas, em Barra do Guaicuí, que Rosa chamou de Guararavacã do Guaicuí.

Slackline é uma das práticas que integram esporte e natureza no Parque das Andorinhas.

Escalada esportiva: desafio e preservação em meio às rochas de Ouro Preto.

Fernando Piancastelli
Ane Souza
Ane Souza
Descida em caiaque pelo trecho navegável do Velhas: aventura, natureza e superação.

Educação ambiental e diversão: jovens e crianças vivenciam o Velhas por meio de práticas aquáticas como caiaque e stand-up paddle, aprendendo a valorizar e preservar o rio.

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