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4.10 – A Liberdade, o Carnaval e Outras Artes

Militar, a Democracia Populista e a Era Varga. A exemplo, temos personalidades reescritas como o poeta barroco Gregório de Matos Guerra (Acadêmicos de Santa Cruz, 1991) e o político e jurista Rui Barbosa de Oliveira (São Clemente, 1999). São temas inesgotáveis sobre personalidades que são rememoradas pela liberdade coletiva, o Boca do Inferno, “jovem inteligente/ De versos maldizentes” (Anexo 65), pela poesia satírica; e a Águia de Haia pela oratória, pelo discurso e pelo engajamento político em prol da liberdade e do progresso. Outra observação, que merece anotação, é que, ao apontarem essas duas personalidades, com a mesma atenção que dispensamos a Jorge Amado, os autores exaltam o lugar deles e, não por coincidência, evocam a terra natal, épica e honrosamente.

Assim, quanto a Gregório de Matos, “Floresceu seu ideal lá na Bahia” (Anexo 64), a Rui Barbosa “Minha escola faz a festa/ Traz para o povo um baiano genial” (Anexo 100), a Jorge Amado: “Ave, Bahia sagrada! / Abençoada por Oxalá”. (Anexo 222) A homenagem à Bahia de Todos-os-Santos é um reconhecimento do lugar não apenas de Gregório, Rui e Amado, é igualmente memória do autor que se identifica com a cultura afro-brasileira, que tem consciência de que antes do Rio havia a Bahia. A Bahia que enviara vários descendentes que, igualmente, colaboraram para o surgimento do samba e do nosso carnaval.

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4.10 – A LIBERDADE, O CARNAVAL E OUTRAS ARTES

Nesse agrupamento, verificamos tratar das alusões da palavra liberdade à Semana de Arte Moderna, às artes em geral, às personalidades do Carnaval (cinco compositores) e à própria festa do povo, em um exercício metalinguístico. Dessa forma, destaquemos os temas e as alusões a eles: A Semana de Arte Moderna: “Ecoou, ecoou/ Um grito forte: Liberdade/ Fecundou o Modernismo em nossa arte/ E na literatura nacional/ Nossos artistas por aqui se propagaram/ E também se consagraram com a primeira bienal”, da Unidos da Tijuca, em De Portugal à bienal do país do Carnaval, 1989. (Anexo 56) Artes: “Difícil/ Conviver na adversidade/ Com arte ser eficiente/ Fazer da pintura sua liberdade/ Fazer esculturas usandoa paixão/ Feitiço de poeta invade o coração/ Divino é o poder da criação”, da Império Serrano, em Ser diferente é normal: O Império Serrano faz a diferença no Carnaval, 2007. (Anexo 180)

“Do alto do morro o Redentor abraça o gênio/ Que hoje repinta essa cidade/ Moleque recife é saudade/ Há tantos meninos assim/ Querendo um sonho, / Na liberdade das cores sem fim/ Pintor da alegria, calor da emoção/ Pintou renascer no meu coração/ No tom da folia vou me apresentar/ Na galeria da Jacarepaguá”, da Renascer de Jacarepaguá, em O artista da alegria dá o tom da folia, 2012. (Anexo 224) Significativo enfatizar que, ao se voltar para uma situação metalinguística, o escritor reverencia o Carnaval e as personalidades destacadas que dele fizeram e fazem parte. Assim, percebemos que, no contexto da palavra liberdade, os carnavalescos, sambistas e compositores Mano Décio, Candeia, Dona Ivone Lara e João Nogueira foram versificados nesse período de 1986 a 2013, como reconhecimento do lugar que eles ocupam na memória do Carnaval. Mano Décio: “De sua arte veio a Glória/ De Mangueira a Madureira/ O pregão de um jornaleiro/ Era a luz de liberdade/ No talento de um guerreiro/ Braço forte no trabalho/ Com o sonho de vencer”, Arrastão de Cascadura, Mano Décio, apoteose do samba, 1986. (Anexo 40) Mano Décio da Viola, Décio Antônio Carlos, compôs mais de 500 sambas e, com o parceiro Silas de Oliveira, foi um dos pioneiros na composição de samba-enredo para os desfiles do Carnaval. A Império Serrano desfilou por 19 anos cantando composições suas37 . Candeia: “Vamos lembrar na avenida/ Candeia, Luz da inspiração (ao som) / Ao som da viola e do pandeiro/ Sou mais o negro brasileiro/ Assim ele nos dizia/ (...) / Igualdade, liberdade é natural/ Pro negro não voltar ao humilde barracão”, da Unidos do Jacarezinho, em Candeia, luz da inspiração, 1986. (Anexo 44) Candeia, cognome de Antônio Candeia Filho, começou a frequentar as rodas de samba aos seis anos. Tocava violão e cavaquinho, jogava capoeira e costumava a frequentar os terreiros de candomblé. Foi muito respeitado por sua firme oposição em favor do negro, tanto que em 1975 deixou a Portela e criou o Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, do qual foi o primeiro presidente. Dona Ivone Lara “Dona, dama, diva... / Estrela do samba de luz radiante/ Show na opinião/ Parceira de bambas, carreira brilhante/ Com a liberdade num lindo alvorecer”, Império Serrano, “Dona Ivone Lara, enredo do meu samba”, 2012. (Anexo 223) Dona

37 Essas informações foram extraídas da Enciclopédia da música brasileira: samba e choro/ editor Marcos Marcondes: seleção de verbetes Zuza Homem de Mello. São Paulo: Art Editora, Publifolha, 2000. As referências a Mano Décio estão nas páginas 140; de Candeia 52 e 53; de Dona Ivone Lara 134 e de João Nogueira 171.

Ivone Lara participou ativamente da Império Serrano e escrevia sambas-enredos em um período em que não se aceitavam mulheres sambistas. Compôs quase 300 músicas. Em 1984, apresentou-se em shows no Japão, na Itália, na Martinica e na Espanha, junto com o Fundo de Quintal, Martinho da Vila e Paulinho da Viola. João Nogueira: “Chora viola, a saudade está no ar/ Pai abençoe essa homenagem/ Na grande tela a dor da liberdade/ No compasso reescrevo a sua história/ (...) / João meu Brasil ... encanta. / É Nogueira, de todos os sambas/ Um ser de luz, pura magia/ Meu poeta virou poesia”, Em Cima da Hora, “Além do espelho, João Nogueira de todos os sambas”, 2013. (Anexo 227) João Batista Nogueira Júnior também teve uma grande produção escrita e participou de várias gravações musicais, inclusive, foi presidente do Clube do Samba, fundado em 1979, por ele e outros sambistas famosos, como Alcione, Martinho da Vila e Beth Carvalho.

Nesses sambas-enredos, que reverenciaram as quatro personalidades relacionadas ao carnaval, é inescapável uma coincidência, além do emprego da palavra liberdade, nosso objeto de estudo, o vocábulo luz está atribuindo sentidos a cada um dos sambistas. Mano Décio é a “luz da liberdade”, Candeia a “luz da inspiração”, Dona Ivone Lara a “luz radiante” e João Nogueira é “um ser de luz”.

Dona Ivone Lara – (Foto Silvana Marques – Arquivo Pessoal). Fonte: http://ego.globo.com/musica/noticia/2016/04/dona-ivone-lara-comemora-95-anos-da-forma-quemais-gosta-com-samba.html

Por sua vez, localizamos quatorze sambas-enredos em que foi empregada a palavra liberdade, aludindo ao Carnaval, propriamente dito, confirmando o uso da metalinguagem, da reflexão na letra sobre o próprio evento. Dessa forma, relacionamos, por ordem cronológica as escolas, os sambas, e os versos sobre o Carnaval: 1989 – Arranco: Quem vai querer?, “Chegou o carnaval/ Sou liberdade nessa avenida”. (Anexo 54) 1990 – Unidos da Tijuca: E o Borel descobriu... navegar foi preciso, “Por mares nunca dantes navegados/ Meu Brasil vem empolgado/ (...) / São caravelas/ Ventos da liberdade e amor / E nessa onda/ Seu Cabral nos encontrou” . (Anexo 61) 1990 – Unidos de Lucas: O magnífico Niemeyer, “Chegou a hora, o Galo cantou/ Liberdade, liberdade! / Brasília você é bonita”. (Anexo 62) 1992 – Mangueira: Se todos fossem iguais a você, “É carnaval/ É a doce ilusão/ É a presença de vida no meu coração/ Vem... vem amar a liberdade/ Vem cantar e sorrir/ Vem em um mundo melhor/ Vem... meu coração está em festa”. (Anexo 71) 1997 – Boi da Ilha do Governador: Galanga no Congo, Chico Rei em terras de Vila Rica, “Inspirado na coragem vou pedindo passagem/ Liberdade, liberdade”. (Anexo 91)

1999 – Unidos da Ponte: O samba é a minha voz, “Bumbum, paticumbum, ziriguidum/ Liberdade, liberdade! / Kizomba foi o sonho que sonhei”. (Anexo 101) 2000 – Acadêmicos do Grande Rio: Carnaval à vista, “Verdade/ Se tornou realidade/ Enfim o carnaval da liberdade/ Pega o tambor, me leva que eu quero ir/ Amor vem fazer sorrir”. (Anexo 108) 2002 – Acadêmicos da Barra da Tijuca: Da magia imperial ao atual cenário republicano, mas podem me chamar de tijucano, “Tijuca é poema/ É nossa liberdade de viver/ Na praça, teatro, cinema/ Sou tijucano pra valer”. (Anexo 121) 2003 – Unidos do Porto da Pedra: Os donos da rua, um jeitinho brasileiro de ser”, “Lá vou eu/ Sou bem malandro e sou fã da liberdade... / Lá vou eu/ Sou o Tigre, eu sou dono da cidade”. (Anexo 143) 2004 – Difícil é o Nome: Vinte anos de glória da LIESA, “Quando um grupo de amigos bambas/ De dez escolas de samba/ Ecoando a voz da liberdade/ Fundou nossa liga independente”. (Anexo 150) 2005 – Paraíso do Tuiuti: Cravo de ouro, eu também sou da lira e não quero negar, “Cinema, cultura e arte / Liberdade, não calem a nossa voz/ Gira a baiana a anunciar/ Quem é do samba não pode faltar”. (Anexo 159)

2008 – Acadêmicos do Dendê: Lendas à brasileira, com gosto de manga e perfume de jasmim, “minha escola vai brilhar/ Lendas de paz e amor, assombrações e pavor/ De heróis e liberdades”. (Anexo 187) 2009 – Imperatriz Leopoldinense: Imperatriz... Só quer mostrar que faz samba também!, “O grito de campeão vem/ Arlindo, o que é que a Bahia tem/ Com Lamartine és a mais bela/ Liberdade, liberdade na passarela”. (Anexo 196) 2012 – Estácio de Sá: Luma de Oliveira: coração de um país em festa, “No Cordão da Bola Preta, a fantasia / Cinelândia, onde tudo acontecia/ Arlequins, pierrôs e colombinas/ Onde a liberdade predomina”. (Anexo 221) Nesse agrupamento, destacamos que a Semana de 22 foi enaltecida nos versos da Unidos da Tijuca, em 1989, escultores, pintores e poetas foram reverenciados no seu papel artístico, inclusive os autores de enredo alegaram que “até o meu Borel ganhou uma cor bem mais viril”. Desperta-nos a atenção a maneira irônica com que se referiram a Dom João VI: “Foi João, foi/ Dom rei fujão/ Que trouxe a missão/ Que fez da arte a profissão” (Anexo 56), afinal poucos sambas trataram personalidades históricas com críticas, sátiras e deboches, de forma direta, nos sambas-enredos aqui coletados. O samba-enredo da Império Serrano, 2007, apresentou críticas à dificuldade em se conviver na adversidade, com os diferentes, os loucos, e ser eficiente com a arte. A convivência harmoniosa é, para eles, a maneira de se chegar à felicidade. Encerram a canção perguntando aos pintores, escultores, poetas, foliões, interlocutores “Será que existe? / Limite entre a loucura e a razão”. (Anexo 180) Importante verificar que, aliada ao tema das artes, a religiosidade também foi inscrita pela Renascer de Jacarepaguá, 2012, ao homenagear o pintor Romero Brito, “Deus mora na inspiração” e “Do alto do morro o Redentor abraça o gênio”. A respeito dos quatro carnavalescos reverenciados com a inscrição da palavra liberdade, devemos considerar que eles passaram a ocupar o lugar das personalidades históricas oficiais da nossa memória. Parece-nos que os dirigentes das escolas de samba e os autores dos sambas-enredos compreenderam a necessidade de apontar, num discurso metalinguístico e intertextual, a questão da memória dos seus próprios produtores. Afinal, se a história oficial cuidava das nossas personalidades mais destacadas na política, na cultura e na literatura, por exemplo, a eles, que mais vivenciavam o carnaval, competiria falar sobre os integrantes da sua comunidade. Quem poderia saber mais sobre Mano Décio, Candeia, Dona Ivone e João Nogueira?

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