permite a aproximação do receptor (o leitor / folião) com a entidade, o ser narrado e reconfigurado. Se o samba é encerrado com “o seu ideal de liberdade”, o compositor escreve que “o lamento de outrora”, cantado por ele naquele momento, “jamais se esqueceu”, reconhecendo, assim, o valor da solidariedade e da memória. Dessa forma, ao se recuperar as lembranças do passado, no discurso do samba-enredo, Monique Augras observa que: Na maioria dos casos, trata-se de opor o hoje ao antigamente, valorizando a situação atual. Mas isso só pode ocorrer na medida em que se tem uma visão crítica do passado, quando os aspectos negativos não estão sendo desapercebidos (...) quando a visão do compositor opõe-se à idealização costumeira. (AUGRAS, 1998, p. 119)
2.4.5 – CHICO REI Naquele mesmo ano de 1964, a escola de Samba Salgueiro apresentou um dos maiores textos do gênero, não somente pela dimensão estética, formal, mas pelo intenso conteúdo histórico e poético, era o samba-enredo dedicado a Chico Rei. A história daquele líder negro, Galanga em terras de África, é recontada com base em estudos da tradição oral e da nova história, considerando, evidentemente, a cultura popular de Ouro Preto. Assim, o introito da canção parte do litoral africano, lugar em que Chico Rei vivia com a sua “tribo ordeira”. Ele, rei, não simbolizava o sol do absolutismo, mas a terra, uma terra “laboriosa e hospitaleira”. Os portugueses colonizadores – muitas vezes romantizados nos enredos – aqui são representados em um contexto de críticas contundentes, tratados como invasores e capturadores de homens africanos “Para fazê-los escravos no Brasil”. A viagem é narrada, ainda que brevemente, à moda do famoso poema O Navio Negreiro, de Castro Alves, e toda a memória, inscrita nele, fica centrada na árvore símbolo da vida, o Baobá. Na segunda estrofe do poema, Minas Gerais é descrita como o lugar da recepção ao líder africano, antecipando os feitos daquele homem. A palavra liberdade é verbalizada nos seguintes versos: “Sob o sol da liberdade trabalhou”. Em Chico Rei, “Jurou à sua gente que um dia os libertaria”, naturalmente, a palavra gente, no singular, foi desdobrada para o masculino e plural, contrariando, evidentemente, a linguagem culta, para enfatizar, de forma distinta, a coletividade. Nessa elaboração, é oportuno ressaltar que Muniz Sodré aponta para uma transitividade discursiva na letra de samba, na canção popular de uma
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