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OS TARAHUMARAS PENSADOS NO MÉXICO

O país dos Tarahumaras está cheio de sinais, formas, efígies naturais que não parecem nascidas do acaso; como se os deuses, que em todo o lado ali sentimos, tivessem querido dar um aspecto visível aos seus poderes com estas estranhas assinaturas onde a figura do homem é constantemente perseguida.

É verdade que não faltam na terra lugares onde a Natureza, movida por uma espécie de capricho inteligente, esculpiu formas humanas. Mas o caso é aqui diferente: porque foi em toda a extensão geográfica de uma raça que a Natureza quis falar. E é estranho os que ali passam, como se fossem tocados por uma inconsciente paralisia, fecharem os seus sentidos para tudo ignorarem. Quando a Natureza, por um capricho estranho, mostra de repente um corpo de homem a ser torturado num rochedo, podemos começar por pensar que apenas se trata de um capricho e este capricho nada significa. Mas quando a mesma magia inteligente se repete durante dias e dias a cavalo, e a Natureza manifesta com obstinação a mesma ideia; quando as mesmas formas patéticas regressam; quando cabeças de deuses conhecidos surgem nos rochedos e um tema de morte se liberta, fazendo-o obstinadamente à custa do homem — e à forma esquartejada do homem respondem as dos deuses tornadas menos obscuras, mais libertas de uma petrificante matéria, dos deuses que desde sempre o torturaram — quando todo um país desenvolve sobre a terra uma filosofia paralela à dos homens; quando sabemos que os primeiros homens utilizaram uma linguagem de sinais e encontramos essa língua formidavelmente ampliada nos rochedos, é bem verdade que não podemos continuar a pensar que seja um capricho, e este capricho nada signifique.

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1 «A Montanha dos Sinais» é, segundo parece, o primeiro texto escrito por Artaud sobre o México, enviado de Chihuaha a Jean Paulhan; mas o segundo a ser publicado em espanhol por El Nacional, em 16 de Outubro de 1936, com o título «La Montaña de los Signos». (N. do T.)

Se a maior parte da raça tarahumara for autóctone e tiver caído do céu na Sierra, como ela pretende que tenha acontecido, poderá dizer-se que caiu numa Natureza já preparada. E esta Natureza quis pensar como o homem. Mas tal como ela evoluiu a partir dos homens, de igual forma evoluiu a partir dos rochedos.

Eu vi este homem nu, que estava a ser torturado, preso a uma pedra e com formas que por cima dele actuavam, e o sol volatilizava; mas não sei por que milagre óptico o homem permanecia por baixo delas inteiro, apesar de estar dentro da mesma luz.

A montanha ou eu próprio, não poderei dizer qual deles estava assombrado; mas, pelo menos uma vez por dia, fez-se evidente um análogo milagre óptico que eu vi neste périplo através da montanha.

Talvez eu tenha nascido com um corpo atormentado, com artimanhas, como a imensa montanha; mas um corpo com obsessões que ajudam; e apercebi-me, na montanha, que nos ajuda ter a obsessão da contagem. Não houve sombra que eu não tivesse contado, quando a sentia rodar à volta de uma coisa qualquer; e foi a adicionar sombras que eu muitas vezes consegui subir a estranhas moradas.

Vi na montanha um homem nu debruçado numa grande janela. Só tinha por cabeça um grande buraco, uma espécie de cavidade circular onde o sol ou a lua, à vez e de acordo com as horas, aparecia. Tinha o braço direito estendido como uma haste, e o esquerdo também como uma haste, mas afogado na sombra e dobrado.

Podíamos contar-lhe as costelas, que eram sete de cada lado. No lugar do umbigo cintilava um triângulo brilhante, feito de quê? Não saberei dizê-lo. Como se a Natureza tivesse escolhido esta parte da montanha para deixar a nu os sílex fechados dentro de si.

Mas apesar de aquela cabeça estar vazia, a toda a sua volta os recortes da rocha impunham-lhe uma determinada expressão que a luz de hora a hora matizava.

Aquele braço direito estendido para a frente e contornado por um risco de luz não indicava arbitrariamente uma direcção… Procurei descobrir o que ele anunciava!

Ainda não era meio-dia quando encontrei esta visão; eu ia a cavalo e avançava depressa. Mas pude ainda assim reparar que não estava a ser confrontado com formas esculpidas, mas com um determinado jogo de luzes que se acrescentava ao relevo dos rochedos.

Os índios conheciam esta figura; pela sua composição, pela sua estrutura, pareceu-me que obedecia ao mesmo princípio a que toda a montanha, por troços, obedecia. Na linha do braço havia uma aldeia rodeada por uma cintura de rochedos.

E vi que todos os rochedos tinham a forma de um peito de mulher com dois seios perfeitamente desenhados.

Vi oito vezes o mesmo rochedo que fazia estender no solo duas sombras; vi duas vezes a mesma cabeça de animal que tinha presa na goela a sua efígie; vi, a dominar a aldeia, uma espécie de enorme dente fálico com três pedras na ponta e quatro buracos na sua face externa; vi todas estas formas a pouco e pouco passarem até à realidade.

Pareceu-me que lia em todo o lado uma história de parto na guerra, uma história de génese e caos com todos estes corpos de deuses esculpidos como homens e estas estátuas humanas truncadas. Não havia uma única forma intacta, nenhum corpo que não me aparecesse como que saído de um recente massacre, nenhum grupo onde eu não pudesse ler a luta que o dividia.

Encontrei homens afogados, meio comidos pela pedra, e em rochedos mais altos outros homens que se esforçavam por afastá-los dali. Noutro lugar, uma enorme estátua da Morte tinha na mão uma criancinha.

Há na Kabbala uma música dos Números; e esta música, que reduz o caos material aos seus princípios, explica com uma espécie de matemática grandiosa como a Natureza se ordena e dirige o nascimento das formas que ela retira do caos. E tudo o que eu via parecia-me obedecer a um algarismo. As estátuas, as formas, as sombras davam sempre o número 3, 4, 7 e 8, que se repetia. Os bustos de mulheres truncados chegavam ao número 8; o dente fálico, a que eu já me referi, tinha três pedras e quatro buracos; as formas volatilizadas chegavam ao número 12, etc. Volto a repetir: é possível admitir-se que estas formas sejam naturais; mas a sua repetição não é natural.

E ainda menos natural os Tarahumaras repetirem as formas do seu país nos rituais e nas danças. E estas danças, que não nasceram do acaso, obedecem à mesma matemática secreta, à mesma preocupação do subtil jogo dos Números a que toda a Sierra mostra obediência.

Ora, acontece que os Tarahumaras semearam com sinais, sinais perfeitamente conscientes, inteligentes e de acordo uns com os outros, esta Sierra habitada e que sopra um pensamento metafísico nos seus rochedos.

Em todas as voltas dos caminhos vêem-se árvores voluntariamente queimadas, com a forma de uma cruz ou a forma de seres, e é vulgar estes seres serem duplos e estarem de frente uns para os outros, como se quisessem manifestar a dualidade essencial das coisas; e vi esta dualidade ser restituída ao seu princípio num sinal com a forma de fechado num círculo, que me surgiu marcado a ferro em brasa num grande pinheiro; outras árvores tinham lanças, trevos, folhas de acanto rodeadas por cruzes; aqui e além, em lugares inacessíveis, estranguladas gargantas de rochas, desenvolviam-se em procissão linhas de cruzes egípcias com asas; e as portas das casas tarahumaras mostravam o sinal do mundo dos Maias: dois triângulos opostos, com os vértices ligados por um traço; traço que é a Árvore da Vida e passa pelo centro da Realidade.

Caminhando através da montanha, estas lanças, estas cruzes, estes trevos, estes corações folhosos, estas cruzes compósitas, estes triângulos, estes seres que se voltam uns para os outros e se opõem para testemunhar a sua guerra eterna, a sua divisão, a sua dualidade, despertavam em mim estranhas memórias. De repente lembrei-me de que a História faz referência a Seitas com o hábito de gravarem nos rochedos os mesmos sinais que os homens usavam sobre si esculpidos em jade, batidos sobre ferro ou cinzelados. E dei por mim a pensar que este simbolismo dissimula uma Ciência. E parece-me estranho que o povo primitivo dos Tarahumaras, com rituais e um pensamento mais velhos do que o Dilúvio, tenha dominado esta ciência muito antes de a Lenda do Graal aparecer, muito antes de se ter formado a Seita dos Rosas-Cruzes.

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