35 minute read

CHATÔ’S CIRCO ÇHOW: UMA EXPERIMENTAÇÃO VIRTUAL EM PALHAÇARIA.

Chatô’s Circo Çhow: uma experimentação virtual em palhaçaria

Miguel Levi de Oliveira Lucas57

Advertisement

Resumo: A senda do palhaço é múltipla e particular. O palhaço pessoal é um caminho solitário, mas também um caminho solidário. Na constituição do espetáculo Chatô’s Circo Çhow, realizado no primeiro semestre de 2020, em parceria com a diretora e palhaça Clara López, experimenta-se o despertar de uma prática, onde tudo que acontece é inédito. Através da pesquisa, dos ensaios e das reflexões, percorre-se o trajeto feito pelo artista em direção ao encontro com a prática de seu palhaço, além das lições tiradas de um processo de direção que tem como objetivo a confecção de um projeto individual com dramaturgia própria. Palavras-chaves: Palhaçaria; Processo Criativo; Arte; Teatro

Diário reflexivo de um palhaço iniciante em tempos de pandemia

1. O PALHAÇO E O ESPELHO

Existe uma semelhança entre o processo de escrita e catar feijão. Era o que dizia o poeta João Cabral de Melo Neto. Porém, ao contrário do catar feijão, em que se tira a pedra, na escrita o processo é o inverso. Retira-se o que boia, guarda-se o que afunda, (MELO NETO, 2020). Esse afundamento das palavras, das experiências aponta, pelo menos para mim, uma certa preciosidade daquela vivência que a justifica enquanto objeto de escrita. Ao mesmo tempo, trabalhar com pedras é sempre uma tarefa árdua e complicada. Para esculpilas, colocando-as no papel, paga-se um preço. A começar pelo fato de que muito material será descartado, não será aproveitável no entalhe do texto, segundo que o entalhe é feito à unha, custa as mãos daqueles que o fazem. Quando se escreve, sangra-se. O processo criativo em palhaçaria que proponho compartilhar é também uma escrita. Ou, e aqui faço uma aposta, um processo de escritura. Sigo as trilhas deixadas por Puccetti (2008) de que o palhaço é algo pessoal, intransferível e extremamente custoso para ser

57 Palhaço e discente do 10º Período de Psicologia da UEMG-Divinópolis. E-mail: miguelevol@gmail.com

89

realizado. Quando se compõem em palhaçaria, seja o texto dramatúrgico, a partitura corporal, as energias que envolvem o espetáculo, paga-se um preço. É o preço comum à toda criação. Como diria Lacan (1962-1963/2005) é preciso deixar ali a sua libra de carne. Assim, optarei não por um avançar cronológico, mas por estabelecer uma narrativa mais temática, tratando de certos aspectos em primazia de outros. Se trata, além de um didatismo, de uma aposta de que essa construção permita melhorar a visão sobre o processo. Ao invés de fragmentar os aspectos, reuniremos eles em tópicos comuns que permitem uma jornada mais organizada. A constituição e criação do espetáculo Chatô’s Circo Çhow sucedeu-se no ano de 2020 pouco após meu retorno do curso da “Menor Máscara do Mundo Palhaça/Palhaço” ministrada por Ésio Magalhães, do Barracão Teatro. Havia sido uma experiência, no mínimo, frustrante. Eu adoecera durante a jornada até Campinas, não me recuperando totalmente, o que, em termos de corpo, me atrapalhou um bocado. Ao mesmo tempo, durante as atividades do curso, não conseguia me encontrar enquanto praticante, tinha medo, achava a experiência ao mesmo tempo que maravilhosa, apavorante. Estar em um lugar com atores/palhaços selecionados com um mestre de tamanho renome era algo muito grave para mim, jovem artista do interior de Minas Gerais. Em essência, das várias ressonâncias que o curso teve em mim, fora a de que o palhaço, acima de tudo, por mais doloroso que seja, deve ser divertido. É preciso deleitar-se com suas não-conquistas existenciais. Um desafio. Necessário, porém. De modo que, embora tenha sido um curso muito difícil para mim, fora muito proveitoso e deu bons resultados.

Uma outra ressonância do curso foi o contato que estabeleci com a diretora equatoriana Clara López, da companhia Teatro del Camino. Havia feito uma oficina com ela em 2019, buscando aprofundar certos aspectos do esboço que eu tinha de meu palhaço. Através de uma certa amizade e conexão artística, coisa que acho fundamental para o (des)envolvimento de qualquer trabalho. Após a oficina de 2020, entrei em contato com Clara para que fizéssemos um trabalho de criação de palhaçaria voltada para a rua. Até aquele momento, não sonhávamos com pandemia e com a triste realidade que se aplacaria, a do fechamento da rua.

Contato feito, partimos para o processo. Foram características propostas por Clara e por mim acolhidas, que trabalhássemos com duas coisas em mente: seria um processo de cocriação, não apenas direção. E que buscaríamos, de nosso jeito, estabelecer uma dramaturgia palhacística própria, traço importante dos trabalhos desenvolvidos pelo Teatro del Camino.

90

Os encontros aconteceram, a princípio, no final de semana. A primeira vez, fora presencial, no começo de março de 2020, mas a segunda já se tornara online. Proposta pensada por nós dois, com o objetivo de não parar o que já havia sido desenvolvido até ali. A arte, por si, não para. Os artistas, talvez. Mas após reflexões, chegamos a conclusão que parar o trabalho ali seria prejudicial não somente para o processo, mas para nós também. A bem da verdade, carecia eu de uma certa rodagem, era minha primeira vez trabalhando sozinho e praticamente não tinha muita experiência de cena. Havia um roteiro prévio, escrito com base em números comuns da palhaçaria. Eram esses, o dos pratos de equilibrismo, de bolinhas de malabares e um número envolvendo saltos acrobáticos com uma pulga imaginária. Não havia, ali naquelas cenas, um trabalho mais elaborado. A coisa estava bem crua. Mas como diz o palhaço Chacovachi (2015), não existe regra na rua, os números não são de ninguém. Logicamente, existe uma ética. Você pode copiar números, desde que não os apresente no mesmo lugar de quem você os copiou. Os números ali serviram como estopins que através do trabalho foram se modificando e se tornando genuinamente do palhaço que os apresentava. Nesse encontro presencial, que aconteceu em um sábado e domingo de março, mapeamos como as coisas estavam comigo e meu palhaço. Essa prática, a da palhaçaria, exige uma certa constância, é preciso que se pratique a entrada no estado, sua permanência ali. Como eu tinha pouca experiência, isso se apresentava como um desafio. Porém, nas primeiras rodagens do que era o esqueleto dramatúrgico do espetáculo, percebemos que havia ali um desejo em cena, uma vontade de estar palhaço. Através dessas experimentações foi possível mapear aspectos das personalidades de Chatô, dando direção para o trabalho de criação do ator e da diretora. Esses aspectos que aparecem, quase nunca são intencionais, pelo menos no começo. Mas com o olhar observador de quem busca, é possível torná-los intencionais, pois muito comumente são eles que tornam o palhaço risível e único. Puccetti (2008) dirá que o palhaço se dá através da relação com o público e que o riso acontece à partir disso, e não anteriormente. Que é através da exposição de si que é possível fazer graça. Esses aspectos nem sempre são negativos, mas são características, trejeitos que quando se apresentam através do corpo do palhaço, de sua ação, se tornam cômicos. Justamente porque nos levam para dentro de sua lógica. Não se trata de uma praticidade. O palhaço não é, quase nunca, prático. Pelo contrário, é puro desejo. Faz aquilo que bem entende do jeito que pensa ser o melhor. Como define Puccetti (2008, p.122): “o palhaço não

91

tem uma forma fixa e definida, ele é um conjunto de impulsos vivos e pulsantes, prontos a se transformarem em ação no espaço e no tempo.” Assim, enquanto fazíamos nossas experimentações cênicas de criação, encontrávamos, muito espaçadamente, maneiras do palhaço de lidar com o imprevisto. Lidar com aquilo que não estava dentro de um texto formalizado. Dessas maneiras saíam as características que foram se apontando como aspectos importantes a serem levadas em conta na hora de produzir um texto dramatúrgico mais formalizado. A charlatanice, por exemplo, é um lócus muito comum na palhaçaria brasileira. Ela brinca com o imaginário do vendedor ambulante, daquelas pessoas que abriam rodas nas praças para vender tônicos, cremes e todo o tipo de coisa.

Lembro que certa vez, na minha cidade, paramos no centro da cidade eu e minha mãe, para assistirmos uma dessas cenas. Como nossa cidade é de médio porte, mas ainda muito interiorana, artistas e vendedores como esses não são tão comuns. Assistimos a apresentação e eu queria, porque fora convencido, comprar o creme milagroso que curava todo tipo de problema. Obviamente minha mãe não deixou e voltei para casa chorando. Entretanto, o vendedor/artista que se apresentava ali me entregara uma coisa muita mais poderosa. Eu saía daquela experiência cativado pela oratória, pela maneira de falar daquele homem. Que sabe que seu produto não funciona como ele pinta, que sabe que as pessoas também sabem que não funciona daquele jeito, mas que sabe o que está à venda não é o produto, mas a sua apresentação. E que as vezes até compartilha isso com a plateia. Ninguém ali é enganado, todos pactuam algo, algo da experiência cênica de rua. De alguma forma era isso que eu queria comprar, mesmo sem saber na época. Eram as falas e feitos que aquele homem narrava, não sua pomada. Sempre achei essa coisa do palhaço charlatão, mágico de araque, muito engraçada. Penso eu que era um sinal, uma identificação de algo que era meu. Tanto é que surgiu nos trabalhos com Clara. Ao mesmo tempo surgia um aspecto, não necessariamente oposto, mas que ia em outra direção. O nome Chatô não é sem motivo. Diz de um significante que me acompanha desde a adolescência. Em meus grupos de amigos, sempre ouvia um: “nossa, mas você é chato, hein?” não era uma ofensa, porque eram sempre ditos de maneira brincante. A verdade é que me agradava ocupar uma posição de instigador, de contrário. De modo que sempre colocava as nossas discussões e relações em posições dialéticas. Não se trata de um

92

chato de galochas, daquele que espalha rodas. É mais pra um chato de estimação, aquele que é bom com todo mundo, mas mais de duas horas de convívio diário cansa. Então embora essa outra característica não seja oposta, claramente se encontra em outra posição, outra parte do espectro da personalidade do palhaço. E não há nenhum problema nisso, porque se o palhaço é a representação de características daquele que o faz, ele é em sua integralidade diverso, não é necessariamente uma coisa só ou outra. Não se enquadra o palhaço, (PUCCETTI, 2008). Até porque isso é tolher dele a possibilidade de explorar outros caminhos. Que levam a outras paragens, as vezes nem sempre imaginadas, mas que sempre estiveram abertas enquanto possibilidade. Por isso quando encontramos no Chatô o uso de frases de autoajuda para tentar convencer quem lhe assiste, não estranhei. São aspectos da minha maneira de ver o mundo, minha lógica. Quando uso dessas frases motivacionais não é porque creio nelas, mas porque as acho cômicas. É, pessoalmente, uma sátira a esse tipo de discurso.

Encontrei aspectos como o “exótico” expressão que uso todas as vezes que tento estabelecer algo como de fora, diferente, mas sempre cômico. O exótico de Chatô na verdade é o mais comum da minha essência. Diz, talvez, de um não-lugar de si, de não se encaixar totalmente. Sensação que é comum a todos, mas que se mostra matéria-prima para a produção e construção de um palhaço. Assim como minhas vontades e referências culturais. Usamos no espetáculo, principalmente, músicas de origem judaica, cigana e árabe. Essas referências estão ligadas a culturas que admiro e gosto, como também se relacionam com aspectos do meu humor. Na época pesquisava à fundo o humor judaico em paralelo com a psicanálise, para a escrita do meu trabalho de conclusão de curso. Que de uma maneira ou outra, reflete na construção cênica. Principalmente por ser um humor mais intelectualizado, que muito me agrada, bem como a música que também admiro. Bem como a cultura cigana que, embora tenha as problemáticas de sua representação, constitui um certo imaginário das pessoas no que concerne ao artista de rua. Não só isso, mas também por características físicas, como o cabelo grande e a barba, decidimos explorar esse aspecto em relação a construção dos aspectos visuais do espetáculo. O último aspecto é uma característica que se mescla entre o palhaço e o atuante. Tratase de um certo gosto pelo humor mais intelectualizado. Aquele que transcorre pela fala e faz graça pelo non-sense ou por uma questão de lógica, ou até com a ironia. Esse último aspecto foi explorado de uma maneira bem natural, à medida que as partes cômicas iam aparecendo

93

nos ensaios de criação, de modo que não foi algo realmente pensado, mas simplesmente surgiu pelas características que tenho. O trabalho do palhaço é, acima de tudo, um trabalho autobiográfico, por mais que se atravesse por outros caminhos, é uma escrita cênica de si.

2. APRENDIZAGENS

Como compartilhar aprendizados técnicos, teóricos sobre a palhaçaria de uma forma que reflitam não somente a informação, mas a maneira como o conhecimento se decanta naquele que o aprende? Tentarei aqui alcançar alguma coisa, não sendo exatamente nem um completo relato detalhado do que discutíamos, conversávamos e fazíamos, mas a seleção do que dessa experiência causou algum tipo de ressoamento em mim. A começar pelo começo, os aquecimentos. Durante minhas jornadas por oficinas, percebi o quanto a ativação corporal era para mim importante. Gostava do esforço, do suor, de estar em um estado de fronteira, entre o que a obediência do corpo e a obediência ao corpo. Burnier (2009) em seus estudos apontou a importância do corpo para o ator, mas também para o palhaço. Tendo ele como marco importante da palhaçaria no Brasil, muitos mestres de palhaçaria utilizam-se dessa técnica.

Não sendo diferente, Clara tendo experiências com Puccetti e outros mestres, tratamos de trabalhar com esse meio de acesso ao palhaço. Rodei, saltei e dancei por horas. Dessa experimentação, encontrávamos movimentos, tendências, maneiras de se portar no mundo que dizem de uma certa “dança pessoal”. Esse trabalho de expurgar as energias superficiais para alcançar aspectos mais profundos é um dos pontos trabalhados no A arte de ator do Burnier (2009). Em consonância com essas anotações e sistematização dos meus movimentos, Clara adicionou o aspecto de equilíbrio e desequilíbrio que nos leva, de uma maneira bem sagaz, para um caminho do palhaço. Que é, por essência, alguém que se encontra sempre nessa linha seja porque suas pernas fraquejam de cansaço, porque seus sapatos são grandes demais. O fato é que o palhaço, enquanto esse ser que se apresenta tem em sua constituição simbólica essa característica. E ao estimularmos isso em todos os níveis de trabalho (inferior, médio e superior), temos uma conexão que se concretiza, metamorfoseada em corpo. Quando entramos em contato com esse corpo desequilibrado podemos olhar para os arredores com um outro olhar. O olhar de quem é torto, não se encaixa e cai. Para mim um dos maiores vexames que alguém pode passar é cair na rua, em frente a pessoas desconhecidas. O palhaço é justamente aquele que cai, se levanta e olha para as pessoas

94

dizendo: “putz, tropecei” compartilhando com todos os seus embaraços. A partir desse olhar, entramos em seu universo, em sua lógica. Cada palhaço vive a sua fantasia, seu mundo mágico e inconsciente, onde as coisas acontecem de acordo com essa lógica constitutiva. Assim, o palhaço pode ser um exímio mágico em seu universo, mas quando confrontado com a realidade – e é daí que surge a graça – percebe-se que ele não é tão bom assim, mesmo que não perceba. E se percebe, joga com isso do seu jeito, maliciosamente ou estapafurdiamente. E estando em seu universo, que é compartilhado não somente pelas suas atitudes, mas pela cena que ele monta, seja no palco, na rua, na praça ou no hospital, cada objeto ali deve, pelo menos assim trabalhamos, ter algum sentido, um significado que o conecte com esse mundo interno daquele que representa. Porque são essas coisas somadas, a atitude, o figurino e a cenografia, que vão conduzir o público, lenta e cuidadosamente para partilhar dessa experiência. O palhaço é, entre várias coisas, um ser que gera empatia. É através da identificação do próprio ridículo no palhaço, como aponta Libar (2008) que o público ri. Essa perspectiva de partilha foi importante para a constituição do espetáculo. Pois me ensinava que eu não estava sozinho em cena, estava em cena juntamente com o público. O que não quer dizer que todo o espetáculo fosse participativo, enquanto um recurso, a participação do público deve ser bem pensada ou acaba enfarando as pessoas, fazendo com que elas se afastem, quando na verdade o que se quer é justamente o oposto, quer que elas se aproximem cada vez. O que em tempos de pandemia e pós-pandemia é um problema e uma revolução. Ao pensar o espetáculo, o artista deveria ter em mente – e aqui relembro, que aponto apenas a minha visão enquanto experimentante das artes cênicas e da palhaçaria, que não existe necessariamente uma regra, mas convenções. A que optei, em parceria com a diretora, foi essa – as sensações que gostaria de experimentar junto com o público, o que ele quer levar. Se a arte cômica é um fazer que necessita de ritmo, ou timing, o excesso de números participativos acaba gerando um tempo morto, visto que cada pessoa reage de um jeito e é preciso ter isso em mente quando constrói-se um espetáculo. Então, esse compartilhamento vai além das sensações. A grande maioria das coisas é partilhado. As vitórias e as derrotas. Tudo isso é escancarado ao público, porque embora não se trate de efetivar a participação do público ativamente a todo número, trata de passivamente, construir o espetáculo com eles. E é com o público que se constrói o ritmo do espetáculo, conduzido pelo palhaço. E é precisamente nesse ponto que entra a importância da pausa. Pausa na ação? Não, mas a pausa que existe entre o 1 e o 2 e depois entre o 2 e o 3. Ritmo é

95

fazer as coisas certas no tempo certo, o que não é feito somente na piada, mas em toda a construção da cena. Ao manter o ritmo na construção da cena, vai se ensinando ao público sobre aquele momento, domesticando-se o riso, até que o afeto culmine em gargalhada geral ou aplausos. O que me leva a outro aspecto importante aprendido naqueles dias. De que o teatro de rua exige do artista um tempo mais concentrado, de modo que ele seja preciso. Trabalhe e construa com o público de maneira clara e rápida, mantendo a tensão e a atenção do público. Na rua é importante ser didático. Ser esclarecedor na rua é uma questão de sobrevivência. São aspectos do espaço que interferem e afetam a criação. É preciso manter o interesse das pessoas em você, já que existem diversos competidores como os vendedores de comida, os brinquedos, o próprio acelerar da vida cotidiana. Basicamente tudo. É preciso manter o público próximo, em uma bolha cênica que faça com que a sua concentração esteja ali, no centro da cena, não nos arredores. Porém, não se trata de uma proximidade física. Ficar próximo demais do público as vezes pode assustar. Como Freud (1919/1976) aponta no seu texto O Estranho de uma certa infamiliaridade existente em algumas experiências. Coloco o palhaço um pouco nesse balaio. É como se, ao se aproximar, perdesse o encanto criado, o pacto feito, e rompesse com alguma espécie de combinado. Assim como deve se evitar confrontações com o público. Aprendi isso tanto nas experiências com Clara, como também no curso que fiz com Ésio Magalhães, do Barracão Teatro. Violência não tem graça. Assim, ao colocar-se em antítese com todo o público, cria-se uma barreira, não um ponto de contato. O artista que decide trilhar o caminho do teatro de rua precisa estar ciente que não será um caminho fácil e que é preciso ter fé no seu fazer. Não é uma questão de mística, mas de acreditar no mundo do palhaço que ali foi criado. Ao acreditar na potência desse universo criado, cria-se nele a possibilidade de que outras pessoas também acreditem. O encantamento do público só é possível através do encantamento do palhaço sobre si mesmo, seu mundo, sua existência. Do jeito que ela é, com seus defeitos e qualidades risíveis. Para que essa crença seja tangível ao público é preciso se conectar com ele, através da ascensão ao estado de palhaço, que gera, devido a sua natureza, a empatia que nos conecta naquele círculo místico que é a roda feita pelo artista. Assim, tendo já estabelecida a sua fé no seu trabalho, o artista pode usar de vários recursos para se conectar com as pessoas que assistem aquela figura meio estranha, que não montou seu espaço, que ainda não se

96

apresentou formalmente. Assim, utilizamos da música enquanto um chamado para as pessoas à roda. Através de cantigas populares recuperadas do cancioneiro do Vale, como Gente que vem de Lisboa, Beira mar novo, e outras músicas como Flor, minha Flor também de caráter popular, mas tornada conhecida pelo grupo Galpão, criou-se um começo de espetáculo. Onde através das canções cantadas e tocadas, em meio a montagem do cenário e espaço cênico, entre trocas de olhares e acenos durante a troca de figurino, e maquiagem artista e públicos se tornam cúmplices de um mesmo fenômeno, o espetáculo de rua que vai acontecer ali.

3. MONTAGEM DE CENA, DESMONTAGEM DE SI

Nesse pedaço do texto tentarei remontar de uma maneira mais linear, seguindo o roteiro do espetáculo, as descobertas que tivemos e as decisões que tomamos que nos colocam a estrutura do espetáculo ao fim do processo criativo. Não chegamos no fim do espetáculo ao fim do processo, visto que o espetáculo se cria com o público, se modifica com ele e nunca é o mesmo quando apresentado mais de uma vez. O que é de se considerar é que tendo o espetáculo se constituído durante o ano de 2020, até o momento não conheceu uma experiência concreta e inteira de contato com o público. Houveram experimentações curtas na modalidade online e na modalidade presencial drive-in, mas não permitiram elas uma interação totalmente relevante para considerar que o espetáculo fora posto à prova. A princípio escolhemos imagens corporais que poderiam ser feitas durante um breve período de alongamentos. Pensando que já existem certos olhares, meio de lado para a figura que aparece na praça carregando suas coisas, parcialmente maquiado, com roupas chamativas e instrumentos musicais. Dali partimos para a necessidade de ativação compartilhada anteriormente e que permeia todo o trabalho. Optou-se pelo uso da corda de pular para a realização desse ativamento. Assim, junto ao exercício, somaram-se certas peripécias, truques de corda, retirados de treinamentos de boxeadores e do próprio exercício de pular corda com acrobacias.

Após esse momento, conta-se que pessoas estarão olhando interessadas. Em comunicação com elas, avisa-se que haverá um espetáculo e que precisamos juntar pessoas para que ele aconteça. Seguindo a divisão de espetáculo proposta pelo palhaço Chacovachi (2015) após essa pré-convocatória, acontece a chamada convocatória e farsa de começo. Tocam-se as músicas, arma-se o espaço cênico, troca-se de figurino, o que por si só já é um

97

ato cômico, até que se consiga, estando pronto, começar o espetáculo. Nesse momento em especial, o palhaço se apresenta, apresenta o espetáculo, chama as pessoas e diz que irá apresentar o espetáculo, mas é preciso ensaiá-lo. A abertura, aponta Chacovachi (2015) é um momento crucial de conexão. Ela dita, de alguma forma, a energia que permeará o resto do espetáculo, por isso, é importante fazê-la de modo enérgico, chamando a plateia para perto de si e aproveitando da energia deles para chamar outros passantes que possam se interessar pela apresentação. Durante essa farsa de começo o palhaço ensaia com a plateia o início do espetáculo. Há aí, claramente um engano, o espetáculo já começou, mas está em seu aquecimento. Assim, na experiência que tive durante a apresentação realizada de maneira drive-in, pude testar um pouco essa construção que fizemos. No roteiro digo que apresentarei o artista e o espetáculo e na deixa certa a plateia deve ir à loucura. Divido o público em três partes, ensaio com cada uma separadamente e depois fazemos “pra valer”. A experiência com os carros foi extremamente interessante. Embora estivesse mais distante das pessoas, ao substituirmos os aplausos e gritos por piscadas de farol e buzinas, preenchemos um espaço que em outra circunstância ficaria vazio. Por mais que seja possível fazer algo de maneira online, não existe nada capaz de substituir a presença física, mesmo que seja ela distanciada. A profusão de barulhos de buzinas, mesclados com as luzes e com os gritos das pessoas e os meus gerou aquela cumplicidade, que se manteve durante o resto da apresentação. Criando a conexão, mesmo que fragilizada pela distância, necessária para que houvesse uma comunicação. Eu estava ali em intensão e em intenção, juntamente com o público. Naquele momento divide-se também, através do texto, a responsabilidade com o público. É preciso plateia para que o espetáculo aconteça, mas assim como também é preciso que a plateia seja ativa, participe, esteja na mesma direção. Direção apontada e seguida pelo artista.

4. UMA COMÉDIA EM TRÊS NÚMEROS

O primeiro número é o que comumente é chamado de “número de virtuose” onde o artista apresentará uma de suas diversas habilidades. No caso, a habilidade escolhida foi o equilibrismo através dos chamados pratos chineses. Esse número e a estrutura seguida inicialmente por ele é de comum uso dos artistas circenses e de rua, já vi pelo menos dois palhaços utilizarem, sendo eles o palhaço Viralata, mais conhecido como Rodrigo Robleño e

98

o palhaço Zabobrim, também conhecido como Ésio Magalhães. É um equipamento simples e sua técnica consiste em basicamente colocar o prato para girar em cima de um palito de madeira. A comicidade desse número, para além da dramaturgia, está ligada à sua escolha. Quando decidi utilizar os pratos, não sabia manejá-los. O que rendeu além de várias trapalhadas, uma dificuldade para constituir a dramaturgia, pois os pratos simplesmente não obedecem àqueles que não lhes são íntimos. Assim, durante todo o processo até o culminar do espetáculo, fiz um treinamento paralelo com o equipamento. O palhaço, por mais que mostre uma inabilidade com os instrumentos, na verdade deve ser extremamente hábil. O que se mostra, na verdade não é uma inabilidade real, mas uma brincadeira. Finge-se não saber, mas se sabe. É preciso um treinamento do ator, da máscara séria em qualquer habilidade que o palhaço se propõe. Depois que dominada a sua intenção, sua técnica, passa-se a utilizá-la no estado de energia do palhaço, o que também demanda mais treinamento. Começamos o número brincando com imagens, utilizando-se da frase solta por mim em um dos ensaios “circo é imaginação” apelo ao público que use sua imaginação enquanto crio imagens de situações, objetos e animais com os palitos. Partindo da esgrima, atravessando para tocar bateria, transfigurando-se em borboleta até culminar no encontro entre um palito e um prato. A partir daqui se estabelece uma relação de desafio, de habilidade. Como se aquela atividade fosse extremamente difícil. O que não deixa de ser meia verdade. Assim, realiza-se os truques de virtuose, lançando o prato para cima e fazendo-o cair em cima do palito sem parar de girar. Resgatamos novamente um clássico clichê do teatro de rua e do circo ao dizer que sempre “no circo gostamos de desafio, por isso faremos algo mais difícil” acrescentando então outro palito, para realizar trocas de prato entre palitos. Após a empreitada, acrescentamos outro prato. E realizamos o que é, tanto para palhaço quanto para ator, a parte mais desafiante do número, quando acontece o lançamento e troca de lugar dos dois pratos. Finalizando com essa apoteose, encerramos enquanto estamos ganhando. E partimos para o segundo número. No segundo número exploramos os aspectos visuais, musicais e culturais do imaginário sobre a cultura árabe – evitando, obviamente, cair em algum tipo de clichê que reproduzisse algum tipo de opressão. Pelo contrário, acentua-se as semelhanças dos absurdos acontecidos no oriente médio com os absurdos acontecidos aqui – através da utilização da

99

cultura do faquirismo, criamos um número. Esse sim, com referências da internet e outros artistas, mas com texto e soluções cênicas nossas. É, dos números, o mais autoral e original. Esse segundo número foi chamado de “O Faquir” ou número do Faquir. E aproveita esse tipo de figura que ficou muito popular nos meados do século XIX e XX, quando havia uma certa visão de misticismo envolta nas tradições culturais do Oriente-médio. Brincando com esse imaginário, tentamos reimaginar o que seria um palhaço que é também faquir. Procuramos instrumentos que poderiam ser interessantes de se usar, passamos pelo uso de meia calça e agulhas, mas não funcionou. Quando se trata de rua, as coisas precisam ser visíveis. Até que certo dia, enquanto arrumava algumas coisas no varal de casa, comecei a brincar com os pregadores. Percebi que esse utensílio, além de representar uma certa reflexão sobre o trabalho, por ser um instrumento que temos comumente em casa e pode ser usado por qualquer um, reflete também o estado em que o mundo se encontrava, com todos dentro de casa, precisando arranjar modos criativos para as coisas. Em essência, jogamos o olhar do palhaço sobre os afazeres cotidianos e encontramos diversas possibilidades de brincadeiras. É possível encontrar no cotidiano várias coisas que se ressignificam na mão do palhaço. E a ressignificação é um dos maiores recursos da palhaçaria, é através da imaginação que é possível criar. O jogo com os pregadores começou explorando as potencialidades do corpo, onde eles poderiam ser colocados de modo que causassem espanto e riso. Chegamos após um tempo experimentando nos pregadores presos na barba e no rosto, caminhamos para as mãos e chegamos por fim nos mamilos. Ao longo de todo o número a comicidade é feita através do inesperado, principalmente na utilização dos pregadores. Isso se dá principalmente porque a atmosfera do número é construída em cima de uma certa sacralidade. O palhaço apresenta o ambiente, o orientemédio, como um lugar místico, quente e perigoso. Sempre acrescentando comentários sobre as teocracias de lá, as ditaduras e fazendo paralelos com a realidade brasileira. Os pregadores são anunciados o tempo todo, com um misto de mistério e alerta, enquanto “Instrumentos mortais” que serão apresentados ao público. Após a utilização dos prendedores – e essa parte do espetáculo é mais voltada para a interação do corpo do artista com os objetos – utiliza-se um último recurso de assombramento e absurdo. Uma língua falsa, que é perfurada por uma enorme agulha. No jogo, prende-se a agulha na língua e quando se tenta retirá-la, a língua sai junto.

100

O absurdo e o ridículo caminham lado a lado nesse número e acho que faz parte das perspectivas que tenho para o humor. O tempo todo brinca-se com a ideia de veracidade dos atos do palhaço. O Chatô’s Circo Çhow trabalha muito com essas ideias, do charlatanismo às avessas. Às avessas justamente porque faz-se questão de mostrar para o público isso, embora não pareça. A comicidade da dramaturgia se encontra nesse desvelamento do palhaço. Quando mostramos ao público que estamos “tentando” enganá-lo, ele se diverte, pois enxerga as tentativas já fracassadas do palhaço de passar-lhes a perna. Finda-se o segundo número desnudo da parte de cima da roupa, com mamilos no rosto, na mão esquerda e nos mamilos. Embora não tenha sido pensado para representar alguma coisa, essa cena para mim é, no mínimo, interessante. Não deixa de ser uma metáfora do espetáculo e daquilo que sentimos enquanto realizamos um processo criativo. É doloroso como os pregadores no rosto e nos mamilos, é expositivo como tirar a roupa, mas termina gerando alguma coisa de encantamento, de fascinação. Tanto para quem faz, como para quem assiste. Embora o número do faquir seja muito ligado ao corpo, ele carrega também a oralidade tão tradicional do palhaço brasileiro, (CASTRO, 2005). O que mescla as diversas aprendizagens que tive ao longo de 2019 como também todo o processo de construção com a Clara.

Do faquir, caminhamos para um momento em que aviso novamente sobre o chapéu e que haverá mais um terceiro número. É uma retomada de um roteiro mais tradicional de palhaços. O número que envolve uma pulga amestrada. Além de uma retomada de um clássico, é também uma outra oportunidade. Explorar outros aspectos e culturas. O Chatô’s Circo Çhow enquanto um tradicional espetáculo de um homem só traduz o imaginário do artista viajante que precisa fazer de tudo para ganhar seu sustento. Nessa parte específica optamos por explorar um pouco mais o aspecto da cultura cigana, principalmente porque me interessava estudar um pouco mais sobre isso e explorar o imaginário que temos pelo Brasil. Também nas pesquisas encontrei diversos “circos de pulgas” de diversos artistas que trabalham esse mote de maneira muito genial, bem como descobri toda a história que envolve essa tradição, as pulgas amestradas reais e sua consequente extinção após a melhora de condições de vida das pessoas. Sabemos hoje que quase não existem mais espécies de pulgas de humanos, por isso optamos por uma pulga amestrada imaginária. A interação se dá principalmente com o palhaço e com uma sacola, que torna mais clara a interação do palhaço em cena com a pulga.

101

Seguindo as táticas propostas por Chacovachi (2015) mantemos o terceiro número como um cunho mais participativo, dependendo mais da interação da plateia. Na rua, ao menos me parece, ao mesmo tempo que se depende do público, é muito perigoso contar com ele. Por isso deve se ter cautela ao utilizar o recurso da interação enquanto um carro chefe de umespetáculo. No caso, há as interações iniciais da pulga com o palhaço, até que se passa para a necessidade de um voluntário, que segurará a pulga, que se chama Cleiton, para fazer um lançamento acrobático da plateia em direção ao centro do espaço cênico e cair na sacola. Cleiton não obedece aos sinais dados por seu parceiro e salta antes do combinado, bem como salta e foge, parando em alguma outra pessoa da plateia. Essa interação da plateia foi toda pensada para quando retomássemos as atividades em rua, coisa que ainda não aconteceu. Porém, na apresentação feita no festival drive-in que realizei, pude experimentar um pouco do número, verificar seus tempos, suas graças. É verdade, que não foi uma experiência ideal, mas já é matéria suficiente para pensar. A coisa em si, funciona e é engraçada, mas funciona justamente por ser a última parte a ser trabalhada dentro da estrutura do espetáculo. Porque já tem a plateia consigo em seu mundo imaginativo. O palhaço, mesmo que posto enquanto um charlatão, já tem a simpatia da plateia e consegue, ao menos em teoria, conduzir o imaginário coletivo para seu universo. De modo que todos se divertem, mesmo sabendo que a pulga não existe, mesmo sabendo que o drama do palhaço é exagerado. Só o é assim, porque o palhaço é assim. Seu mundo é aquele. Sua realidade também é aquela e com a plateia isso só se amplia, uma espécie de avanço da energia que cria esse mundo. Ele existe através do palhaço, mas também através da plateia, visto que os números cômicos de palhaço geralmente pedem a inserção do público no mundo do palhaço. A problemática desse número é que sua adaptação para uma apresentação virtual, pelo menos na estrutura em que foi criado, seria bem improvável. E talvez não funcionasse, sendo necessárias modificações em sua estrutura fundamental, retirando as interações com a plateia. A questão do espetáculo é que ele foi pensado enquanto um trabalho para a rua e assim fizemos questão de manter, na esperança de que seria possível voltar aos trabalhos de rua o quanto antes. Não voltamos. Mas seguimos tentando apresentar as partes do espetáculo que são adaptáveis ao virtual. O que não é, segue guardado. Esperando sua hora de retorno, junto comigo. Como diz o personagem Beckett na obra Beckett y Godot de Radrigan (2009, p.25):

102

Beckett : Esto fue un teatro, el lugar donde una vez se originó la revuelta. Volverá a serlo. Ellos lo saben. Y esperan. Godot : ¿Los fantasmas? Beckett : Los actores. Están acostumbrados a esperar, no cejarán, no pueden. Se han exiliado en oscuros oficios de sobrevivencia, pero saben que en algún lugar ha nacido, o nacerá pronto, alguien que volverá a tocar el corazón de sus semejantes y las ruinosas salas volverán a florecer, siempre ha sido así...58

Esperamos para que o espetáculo e o processo continuem. Embora o processo comece na pandemia, e esta dure mais do que deveria, me parece uma insistência política em apostar na volta do uso da rua, do espaço público. É importante apostar que após todo o caos que vivemos, poderemos contar com o público nas praças. Que tanto ele quanto nós, artistas, precisaremos dessa troca. E desses encontros criaremos outras possibilidades, alegrias e novas formas de resistência. Ser alegre no mundo de hoje, tão violento e carrancudo, é um dos maiores atos de resistência. Pelo menos é o que tenho aprendido com o palhaço.

5. UM BOM PALHAÇO NÃO CHORA

Os números e trabalhos aqui descritos em termos temporais, acumulam algo em torno de 35 minutos. O chapéu, que é o fechamento do espetáculo dura ali em torno de seus 7 minutos. E das partes que desenvolvemos, eu e Clara, é uma das partes que mais tenho carinho e prazer em fazer. A primeira delas é por mostrar esse palhaço que quer receber dinheiro – o que eu acho engraçado e divertido – mas que também muda de tom, deixa escapar o seu ar mais poético. O que tentamos construir é um discurso cativante, emocionado que tem também como função explicar o momento do chapéu para o público da minha cidade, que não é acostumado com esse tipo de abordagem dos artistas. De uma certa forma, explicamos o porquê de se utilizar o chapéu, porque isso é uma tradição e como isso é importante para o artista. Penso eu que o ato de passar o chapéu representa muitas coisas. Representa um ato de confiança (ou loucura) do artista em seu público e em seu próprio trabalho. Esse aspecto, para mim, é o mais marcante na construção dessa parte do texto. Houve aqui um processo de elaboração do “ser palhaço” ou “estar

58 Tradução livre: Beckett: Isto foi um teatro, o lugar de onde uma vez se originou a revolta. Voltará a sê-lo. Eles sabem. E esperam Godot: Os fantasmas? Beckett: Os atores. Estão acostumados a esperar, mas não pararam, não podem. Se exilaram em escuros trabalhos de sobrevivência, porém sabem que em algum lugar nasceu, ou nascerá, alguém que voltará a tocar os corações de seus semelhantes e as salas arruinadas voltarão a florescer, sempre tem sido assim...

103

palhaço”. Considero que a criação do Chatô’s Circo Çhow foi uma etapa da minha jornada em que eu me autorizava a encontrar o nariz vermelho. É por isso que no discurso do chapéu me remeto a tradições antigas, resgato o imaginário dos artistas de rua, que sempre estão de chapéu, que viajam pelo mundo. É como se, nesse discurso, houvesse um pedido. Pedido de uma benção daqueles que vieram antes. E ainda é um ponto em que digo, olhem, sou um artista de rua, sou um palhaço. Seja para a plateia – maior testemunha daquilo que se encarna ali em frente, desde a colocação da maquiagem, o figurino – ou seja para mim mesmo. Me utilizo da música de Alceu Valença em homenagem a Chacrinha para fazer minha saída. Ao cantar que um bom palhaço não chora Alceu nos lembra que o palhaço é, também, um símbolo de resistência. É alguém que insiste no riso quando toda a perspectiva o levaria a chorar. Não é um riso de alienação, de quem se recusa a enxergar a realidade, mas de alguém que a enxerga e que apesar disso, continua insistindo na potência criadora e empática do riso. Freud (1927/1974) define o humor de maneira bem certeira ao dizer que ele é rebelde, não resignado. E fazer uma peça, mesmo que sem nenhum objetivo explícito de política, torna-se um ato político a medida que ela é pensada para ser feita na rua, em praça pública. Esses versos de Alceu e o encerramento do espetáculo como um todo, para além da necessidade de levantar recursos financeiros, é uma mensagem do autor para si mesmo e para os outros. De que há ali um germinar de um artista, de uma resistência. De alguém que insiste em apostar na poética, no riso. Esse espetáculo é um ato de aposta, de ousadia, não enquanto um feito narcisista, longe disso. Mas existe um abismo entre o fazer artístico amador e o fazer que caminha para um certo profissionalismo. E não somente entre qualidades do material, mas da maneira com que se enxerga o que sai do final do processo criativo. Posso não ser palhaço o tempo inteiro, mas quando sou inteiro, sou palhaço. É ali, naquele estado que enxergo que a senda de um circo show itinerante é a minha senda, não por destino, mas por escolha.

Referêcias

BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica a representação / Luís Otávio Burnier – 2ª ed. –

Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. CHACHOVACHI, Fernando Cavarozzi. Manual y guia del payaso callejero. La Plata: Yanantuoni,

Javier Miguel, 2015.

104

CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio da Bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro:

Editora Família Bastos, 2005. FREUD, Sigmund. O Estranho [1919]. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v 17. Rio de Janeiro: Imago, 1976. FREUD, Sigmund. O humor [1927]. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v 21. Rio de Janeiro: Imago, 1974. LACAN, Jacques [1962-1963]. Seminário, Livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. LIBAR, Márcio. A nobre arte do palhaço. Rio de Janeiro: Marcio Lima Barbosa, 2008. MELO NETO, João Cabral de. Poesia Completa / João Cabral de Melo Neto; organização, estabelecimento de texto, prefácio e notas de Antonio Carlos Secchin: com a colaboração de

Edneia R. Ribeiro. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Alfaguara, 2020. PUCCETTI, Ricardo. No caminho do palhaço. In: Revista dos Anjos. nº 5. Rio de Janeiro: Teatro de

Anônimo, 2006. RADRIGAN, Juan. Beckett y Godot. Centro Latinoamericano de Creación e Investigación Teatral (CELCIT), Buenos Aires, 2009.

105

CAPÍTULO IV: PSICANÁLISE

This article is from: