2 OPINIÃO
domingo, 10 DE julho de 2022
ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS
Organização: clauder arcanjo
O chapéu com crepe preto do eterno marido Vera Lúcia de Oliveira
Carol Caminha
Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-DF) veraluciaoliveira@hotmail.com
Já era a quinta vez que Alexsiéi Ivânovitch Vieltchâninov cruzava com o homem de chapéu claro com fita de crepe preto na rua. O olhar desse homem atingia como um raio o seu olhar, deixando-o exasperado. Afinal, quem era aquele homem e o que queria? Vieltchâninov e o homem do chapéu, que se chama Pável Pávlovitch Trussótzki, são personagens do romance O eterno marido (1870), (SP: Editora 34, 2003), uma das obras-primas de Dostoiévski. Os personagens têm muito em comum com outros do autor, bem como a ambientação e o contexto social e psicológico. São homens maduros, solitários, que perambulam pelas ruas de São Petersburgo, correm atrás de negócios, sempre com demandas e processos na justiça; funcionários que trabalham ou frequentam repartições públicas – espaço burocrático de suma importância na vida russa do século 19 e nas obras do autor – que também vivem reclusos em modestos apartamentos. Assim é em O duplo, em Noites brancas, em O sonho do homem ridículo, sem contar o cubículo de Raskolnikóv, de Crime e castigo, e o de Memórias do subsolo, referência em O eterno marido. Há um leque de sentimentos, mudança repentina de humor e uma agitação que os identifica em sua essência. São talvez o protótipo do homem russo como Dostoiévski o percebeu em seu tempo. Cosmopolitas, bem falantes (alguns, verdadeiros tagarelas), perspicazes ao extremo, atentos às regras sociais, questionadores. E ainda os beberrões, como Pável nesse romance. Aliás, poucos escritores no mundo conseguem criar diálogos caudalosos tão inteligentes e cheios de interesse como Dostoiévski. Além das crianças sofredoras, como as de Crime e castigo e da pequena Nietóchka Nezvánova, para citar apenas dois exemplos; ou das famílias que tudo sacrificam para fazer boa figura na sociedade e promover o casamento das numerosas filhas, como a família do general Iepántchin em O idiota. Assim são os
dois protagonistas masculinos de O eterno marido; assim a menina Lisa; e assim as oito filhas do velho Zakhlébinin, moças expostas aos futuros noivos nesse romance. Vieltchâninov é um homem bonito e difícil. Nervoso, hipocondríaco, paranoico, vaidoso, sofredor, impaciente, ressentido, inconsequente, irresponsável, sádico, masoquista, pródigo e com sintomas severos de angústia. Sente-se velho. Mas ainda não chegou aos quarenta. Um caso freudiano. Algo o incomoda profundamente a partir do olhar e “perseguição” do homem desconhecido de chapéu claro com fita de crepe preto: “- É sempre este chapéu! – murmurou como que inspirado. É apenas este maldito chapéu redondo, com seu terrível crepe, a causa de tudo!” (Pág. 20). Aquela fita preta que dizia do luto do homem trouxe ansiedade inexplicável a Vieltchâninov. Começa a desconfiar que talvez conheça o homem de algum lugar, de outra época. Obcecado pela ideia, chega a ter um sonho, na verdade um pesadelo, em que as lembranças do passado emergem, destacando-se a cena em que espanca um homem e sente um enorme prazer, o que chama a atenção, porquanto não se trata de um detalhe, mas do elemento principal (camuflado) do sonho como realiza-
ção de um desejo: “O seu coração petrificou-se de horror e sofrimento pelo ato cometido, mas nesse petrificar-se é que consistia sua delícia.” (Pág. 27). Merece ser investigada essa cena, uma vez que tem sentido na narrativa como índice dos acontecimentos e como o rompimento de uma lembrança dolorosa e recalcada que quer emergir: é o inconsciente se expressando através do sonho. A respeito de Dostoiévski, disse Freud: “Não se pode compreendê-lo sem psicanálise, quero dizer, ele nem precisa dela, pois a explica com cada personagem, com cada frase.” Finalmente, deu-se o encontro dos dois personagens. A partir daí, temos o desenvolvimento da narrativa. O homem traz o passado de Vieltchâninov de volta naquele chapéu. Um passado de nove anos que deveria estar enterrado, mas que volta para atormentá-lo, trazendo também fortes emoções e mudando sua vida. O passado que ocultava uma paixão, que revelava uma dúvida e um grande arrependimento. Justamente agora que tinha quase esquecido quase tudo, vem esse homem ressuscitar o que estava morto e enterrado: a paixão por uma mulher sem atrativos físicos, mas sedutora, que o dominou por
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um ano inteiro em que esteve na província de T.... Sim, era Natália Vassílievna, a mulher do visitante Pável, o homem do chapéu de crepe preto. Mulher cruel e sádica a quem amara e que o subjugara. Com a trama estabelecida, o triângulo amoroso (na lembrança dos dois: “as nossas leituras a três à noitinha.”) (Pág. 40) volta a incomodar. É revivido e explica o motivo de Pável procurar o antigo amigo, que neste, Pável, identifica o papel de marido social “os “eternos maridos”, ou, dizendo melhor, em serem, na vida, unicamente maridos e nada mais.” (Pág. 49). Ou seja, um complemento da mulher, algo como uma bolsa... E, para intensificar o drama, Pável traz uma criança, Lisa, de exatos nove anos. Sim, Pável cumpria papéis: funcionário medíocre, conformista, era ainda marido dominado pela mulher, que o usava para dar-lhe respeitabilidade social. “Afinal que tipo de gente era aquele Pável Pávlovitch Trussótzki, o homem do crepe preto no chapéu, o tipo acabado do “eterno marido”, incapaz de viver fora da condição marital e que definia a si mesmo colocando os dedos sobre a cabeça em forma de cornos?”, pergunta o tradutor Boris Schnaiderman no Posfácio do livro. (Seria essa a causa da angústia de Vieltchâninov ao ver o chapéu na cabeça de Pável?). Sem esquecer que a mulher, Natália Vassílievna, tinha força catalisadora. Mais uma personagem feminina intensa na galeria dostoievskiana, como Nastássia Filíppovna, de O idiota. Mas a personagem responsável pelo pathos no romance é a menina Lisa, cuja presença forte e participação fundamental ocupa mais da metade da narrativa. Como justificar o desamparo, os maus tratos e a tortura psicológica a uma criança? São passagens dolorosas do sofrimento infantil, tema que comovia e fazia sofrer o autor.
Uma linda menina que significou esperança, finalidade de vida para um e objeto de vingança para outro – que foi maltratada – e, por temor dos adultos, aprendeu a calar-se. Uma menina que traria o amor e daria novo sentido a uma existência desiludida e viciada. Outro tema importante é o desejo de assassinato, que nesse romance se diferencia de Crime e castigo, pois, enquanto Raskolnikóv planeja a morte da usurária, em O eterno marido não há premeditação, mas uma vontade súbita que justifica algo como “a ocasião faz o assassino”. Uma navalha à vista deu-lhe o empurrão à tentativa de assassinato. O ódio fez o resto. Como bem diz Schnaiderman, “esta parte do romance suscita uma indagação profunda sobre as relações humanas, isto é, a ligação íntima entre amor e ódio. “Sim – pensa Vieltchâninov – amava-me por ódio, e este amor é o mais forte.” (Pág. 209). O eterno marido trata, portanto, de um acerto de contas. De traição, amor e ódio. É um romance aparentemente simples, mas complexo moral e psicologicamente, no qual o chapéu com fita preta traz lembranças e funciona como índice importante, em que perseguido e perseguidor representam dois tipos russos que podem ser analisados por mais de um ponto de vista. Há igualmente o desejo sobretudo do carismático Vieltchâninov em derrotar Pável em relação às mulheres, deixando-o desolado. No entanto, vítima e algoz se alternam, às vezes se admiram, relativizando as posições, elevando o nível do romance, distanciando-o das obras de visão maniqueísta. Até um surpreendente beijo (indesejado) nos lábios selou a amizade-inimizade dos dois homens. “Ambos somos gente viciosa, subterrânea, vil...”, disse Vieltchâninov num momento de fúria contra o bufão Pável. São relações ambivalentes do caráter humano que Dostoiévski nos apresenta, com discussão ainda sobre os direitos da mulher e sobre a nova geração ocidentalizada, tema que despertou paixões e polêmica desde os anos de 1860 na Rússia, nesse romance irretocável, cheio de ironia e humor, de referências literárias metafóricas, cujo suspense é mantido até o final. Romance trabalhado sem descanso durante três meses e que teve o mérito de resgatar a reputação artística do autor, que fora gravemente ofuscada por O idiota, incompreendido à época, como afirma o biógrafo Joseph Frank. A boa recepção de O eterno marido foi a “primeira resposta artística à fama crescente de Tolstói”, acrescenta. “Enfim, reunião de elementos tão díspares e que, às vezes, parecem contraditórios, este romance é, ao mesmo tempo, um dos momentos mais perfeitos da realização de Dostoiévski como narrador.” (Pág. 210), diz Boris Schnaiderman.
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